Carta a Marina Harkot

Querida Marina,

Não te conheci pessoalmente e, após saber da sua morte no último domingo (8/nov), fiquei me perguntando como teria sido sensacional ouvir você defendendo suas ideias tão certeiras e contemporâneas sobre mobilidade, gênero, bicicleta e cidades mais humanas.

Puxa, Marina, como alguém de 28 anos e em pleno caminho para conquistar um doutorado que São Paulo necessitava tanto morre assim? Queria ter te conhecido lá pelos seus 20 anos, para poder ter visto de perto a formação de suas teorias de que as cidades precisam ser para todos — e isso exclui segregar grupos em determinados espaços, aprisionar ciclistas em certos “chiqueirinhos” e manter divisões socioeconômicas que ainda nos remetem aos tempos coloniais da escravidão.

Sabe que ouvi muita gente próxima e querida perguntar por que você não estava pedalando na ciclovia ali da Sumaré, e sim na rua. Escutei até alguém falar que era muito tarde, já passava da meia-noite, para uma menina pedalar sozinha naquela escuridão.

Ainda bem que me enviaram um vídeo da sua orientadora, a professora Paula Freire Santoro (FAU-USP). Porque eu, na minha tristeza, não teria tido a clareza de proferir as palavras tão impactantes de Paula: você estava no lugar onde deveria estar. No horário em que queria estar. Conhecia aquele trecho de São Paulo muitíssimo bem. A questão não é culpar a própria vítima pelo “incidente” (termo que você mesma usou em uma palestra, pois não foi “acidente”). As cidades são para todos, né, Marina? É preciso urgentemente aprender a compartilhar os espaços.

Adeus, Marina, obrigada por tudo (Foto: Arquivo Pessoal)

Na cidade de São Paulo, são tantos e tão variados os corpos que diariamente lutam para se locomover de forma limpa, seja de bike ou a pé. Todo ciclista já tomou “fechada educativa”, recebeu xingamento do nada e teve de suportar carros passarem colados a nosso guidão. O motorista, de cara feia, grita que nosso lugar é na ciclovia. A menina sozinha leva cantada e até passada de mão em movimento. Ainda bem que você sabia que nosso lugar é onde queremos estar, Marina.

Você também sabia que ciclovia não é garantia de segurança (aquela lá do Sumaré tem tantos assaltos). Em 2018, ano em que você defendeu sua dissertação de mestrado (A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo), por exemplo, eu pedalava na ciclovia da Pedroso de Moraes e, ao atravessar a rua em um trecho sem semáforo, quase morri ao ser atingida por um carro que não olhou se ali — um local de ciclovia! — poderia haver ciclistas. Dente quebrado, ligamento rompido, rosto cheio de hematomas e meses em trauma.

Que pena que não nos conhecíamos para você me dar força e me fazer entender que, diante da violência do trânsito, é preciso continuar, estudar, debater, lutar por um mundo melhor.

Eu, logo após ser atropelada pedalando em uma ciclovia de SP

Eu fico olhando suas fotos, seu rosto ainda tão jovem, porém já tão cheio de conquistas. Sinto orgulho imenso de sua garra, de seu talento para analisar problemas e soluções para as caóticas cidades brasileiras.

Caramba, Marina, o mundo é mesmo tão doido. Não acredito que não vai dar para te convidar para uma cerveja em alguma bicicletaria de São Paulo e te ouvir me explicar que, sim, as cidades têm futuro — e passam por políticas públicas sérias, nas quais o carro para de ser o centro dos interesses para dar lugar aos pedestres e ciclistas.

Precisava tanto do seu sorriso agora para me animar e me dar conforto na certeza de que os políticos brasileiros um dia vão entender isso.

Prometo não perder as esperanças, Marina. Tem horas que bate desânimo. Mas não seria justo com você e tudo o que você estudou em busca de um mundo melhor.

Obrigada por tudo. E um abraço apertado.