Ciclista se torna primeira trans a pedalar do Alasca à Patagônia

Foram quase dois anos, mais de 46.000 km pedalados e 17 países visitados, em uma aventura que teve início no Alasca e terminou na outra ponta do continente americano, na Patagônia.
Só por isso, a empreitada de Natalie Corbett, 33, já seria estupenda. Mas a norte-americana de poderosos olhos azuis e respostas inteligentes vai muito além. Há seis anos, ela assumiu-se mulher e, assim, tornou-se a primeira ciclista trans a completar o percurso, uma das rotas mais sonhadas por quem ama viajar de bicicleta.

A saga ciclística de Natalie não exige apenas determinação e pernas em dia. Requer, acima de tudo, leveza e coragem para enfrentar preconceitos e se viver como se quer. E tornar sonhos realidade — seja derrubando imposições de gênero ou estudando mapas de onde se quer pedalar.
Ver as fotos de sua expedição, algumas das quais publico aqui, é ter a honra de poder acompanhar momentos únicos de uma ciclista inspiradora. E que a todo tempo desafia regras. Seu rosto forte de olhar penetrante e sua risada em países tão distintos quanto os Estados Unidos e o Equador fascinam aqueles que sabem que uma das melhores maneiras de conhecer o mundo — ou seja, de se viver a vida — é mesmo em cima de uma bike.


A seguir, um bate-papo com Natalie sobre transgêneros, desafios e, claro, cicloviagens.
Por que você decidiu pedalar sozinha um percurso tão extenso?
NATALIE CORBETT Porque sozinha eu não preciso perguntar para outra pessoa onde ela quer ir! Para mim, pedalar é uma atividade individual, para se fazer só. Eu uso meu tempo na bike para introspecção e para me perder nos meus pensamentos. Eu curto outras atividades em que prefiro ter alguém comigo, como caminhadas no mato e escalada em rocha. Mas ciclismo, e principalmente cicloviagem, é melhor se fazer sem companhia.
Como pedalar e se lançar em aventuras ciclísticas te ajudou a ser assumir como uma mulher trans, em um mundo onde frequentemente as escolhas alheias não são respeitadas?
Eu diria que foi, na verdade, o contrário. Tornar-me uma pessoa trans me ajudou a ser uma ciclista de aventura. Aprender a não ter vergonha de quem eu sou, a ter orgulho de mim e a viver diariamente como eu acredito foi fundamental para eu viver uma vida de aventuras e acolher esse outro lado de mim mesma.
Muitas pessoas são criadas para se adequar a pequenas caixas, não para facilitar suas vidas, mas sim para fazer a vida dos outros em volta menos desconfortável. Então eu decidi sair dessa caixa das normas de gênero, deixando minha casa para viver na estrada pedalando e acampando. E há muito tempo que deixei de me importar como os outros me vêem. Tornar-me mulher foi a experiência mais profunda da minha vida — não apenas meu gênero se transformou, mas todo meu ser, em direção à pessoa que eu sempre soube que eu era.



Quais as maiores lições que você aprendeu pedalando do Alasca até a Patagônia?
Essa é a questão mais difícil de responder. Enquanto eu estava pensando em uma maneira de dar uma resposta, percebi minha dificuldade em colocar uma experiência acima de outra. Talvez seja por minha característica de conseguir passar longos períodos de tempo pensando e procurando minhas verdades.
Estamos enfrentando um período muito duro de pandemia, quarentena etc. Como sua vida de bike na estrada te ajudou a lidar com essa situação tão bizarra?
Quando algo dá errado durante uma viagem desse tipo, você tem de tentar fazer o seu melhor e encontrar uma solução produtiva. Houve momentos quando eu estava em subidas intermináveis, com muito vento e chuva. Meu corpo estava ensopado, em uma friaca. Eu fui levada aos meus limites e me senti acabada. Nessas horas, eu gritava o mais alto que conseguia, amaldiçoando o tempo, as montanhas, tudo. Depois de um minuto de gritaria, eu me sentia melhor e prosseguia no meu caminho, porque era isso que eu tinha de fazer.
E é isso que precisamos fazer agora, deixar essas emoções saírem, extravasar as tensões do corpo. Depois disso, vamos usar nossas máscaras e nos isolar até que tudo fique mais seguro. Não está sendo fácil, mas no final essas medidas de proteção vão ter valido a pena.


