Ciclocosmo https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br Um blog para quem ama bicicletas Thu, 02 Dec 2021 18:10:08 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As coisas que se manifestam sem nos avisar https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/as-coisas-que-se-manifestam-sem-nos-avisar/ https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/as-coisas-que-se-manifestam-sem-nos-avisar/#respond Sun, 10 Oct 2021 14:40:19 +0000 https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/files/2017/04/Photo-9-180x120.jpg https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/?p=3249 Fico imaginando como deve ter sido doloroso para a Erika receber a notícia de que tinha câncer de mama, e que teria um longo e duro tratamento pela frente, e que seria obrigada a abdicar das suas loucas viagens de bike pelo mundo, por um certo tempo.

Foi no finzinho de 2015, enquanto tomava banho, que Erika sentiu um caroço —já bem grande— em sua mama direita. Ela nunca me contou os detalhes daquele dia —com quem estava, onde estava, o que sentiu… Erika tentava me preservar de suas mais dolorosas angústias. Queria viver e ser vivida, sem as “limitações” trazidas pela doença.

No começo de 2016, logo após a confirmação do diagnóstico, Erika se resignou. Por um tempo —talvez um mês ou dois— se manteve fechada no quarto abraçada ao irmão, depois ao pai, enquanto assimilava sua nova vida. Certamente foi um duro processo de transformação até que ela bravamente rompesse a pupa e começasse a voar por aí, encarando de frente o mundo que tanto amava.

Com a força dos amigos e de seu amor pela bicicleta, ia pedalando às sessões de quimioterapia. Entrava no hospital de sapatilha e jersey. De cabeça erguida, com capacete nas mãos, deixava à mostra sua nova realidade —tinha câncer, mas não renunciava aos grandes prazeres de sua vida.

Erika assumiu então uma grande obra social: ressignificar a doença e se doar como exemplo, publicamente, de que “sim, dá para desviar dos perrengues e curtir a vida”. 

Em 2017, já curada de seu câncer primário, a jornalista criou, em parceria com a Folha, o Ciclocosmo. Apesar da proposição aparente ser a bike e o universo que a cerca, este blog sempre foi um espaço de defesa dos direitos humanos. Quem lê o Ciclocosmo sabe que aqui o assunto é sobre política, sobre igualdade de gênero, de raça, de classe e sobre todas as questões sensíveis ao convívio social —como a saúde da mulher.

Em junho de 2019, quando Erika e eu nos reencontramos —e nos apaixonamos—, o câncer já havia se espalhado pelos ossos. Era uma grave metástase. Os prognósticos já haviam sido dados, e ela não tinha muito o que fazer. A luta, em seu caso, não era mais em eliminar a doença, mas sim em viver da melhor forma possível os poucos anos que a restavam. 

Já calejada pela experiência de 2016, quando além dos cabelos e da auto-estima, perdeu também a companhia de um namorado ordinário que temia pela contaminação da própria saúde, Erika decidiu não comunicar a ninguém sobre sua curta sobrevida. Queria viver normalmente, sem assustar parentes e amigos. Claro que sua inabalável ética não deixava aquela peculiar escolha interferir no futuro de quem intimamente se aproximava. Comigo, por exemplo, Erika foi muito clara. Após nosso primeiro beijo, ela me segurou firme pelos ombros, olhou fundo em meus olhos e disse: “tenho metástase. Se quiser seguir em frente, ao meu lado, é importante que aceite e seja muito sincero comigo. Não tenho mais tempo a perder”.

Sou eternamente grato à Erika. Nos dois anos e dois meses que convivemos e namoramos, findados com sua morte, aprendi valores que os 41 anos anteriores não haviam me trazido.

Ficar tão triste por algo que se foi, indica que foi significante enquanto existiu. Não importa o quanto durou, mas como foi vivido. E posso dizer com todo orgulho, foram os dois anos e dois meses mais bem vividos de toda minha vida.

Câncer de mama é o tipo de câncer que mais mata mulheres no Brasil. Como alerta ou como alento, certamente Erika publicaria aqui algum lindo texto falando do tema.

Para o oncologista Vladmir Lima —médico da Erika, e que ela tanto amava—, do hospital A.C. Camargo Câncer Center, apesar da evolução do tratamento do câncer de mama, “é importante uma mudança de comportamento. Criar na mulher a consciência de que a mama é um órgão que merece atenção especial”. 

Doutor Vladmir indica que o auto-exame —com o qual a Erika descobriu seu tumor— detecta o câncer já em evolução, e que esse método, apesar de super importante, não é o caminho ideal para a contenção da doença. Cada mulher deve se preocupar em fazer um acompanhamento médico preventivo desde cedo. O conhecimento sobre os fatores de risco, sejam genéticos (histórico familiar) ou de comportamento (tabagismo, alcoolismo, sedentarismo, entre outros), deve ser tratado com atenção para determinar quando cada mulher precisa começar a prevenção com mais afinco. “Algumas devem começar já aos 20 anos de idade”, alerta o doutor.

Ter o acompanhamento de um ginecologista e mastologista e realizar mamografia preventiva, é direito de toda mulher brasileira. Tais serviços, hoje já amplamente oferecidos e mesmo assim ainda subutilizados pela população, podem ser obtidos gratuitamente através do SUS em hospitais públicos. Tal prática é essencial para a saúde da mulher, e deve ser valorizada não apenas por ela, como também pelos homens que a acompanham —marido, namorado, pai, irmãos ou amigos.

Carinho e amor são muito importantes, salvam a dignidade feminina tanto na prevenção quanto no tratamento.

INFORMAÇÃO

Para entender mais sobre fatores de risco, prevenção e tratamento, uma boa fonte de informação é essencial. O oncologista Vladmir Lima indica a leitura da Cartilha do Câncer de Mama do INCA (Instituto Nacional de Câncer). Clique aqui para saber mais.

 

 

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Erika Sallum, que sua mensagem viva! https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/12/erika-sallum-que-sua-mensagem-viva/ https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/12/erika-sallum-que-sua-mensagem-viva/#respond Sun, 12 Sep 2021 03:05:12 +0000 https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/erika004-320x213.jpg https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/?p=3135 Em 27 de abril de 2017, a jornalista Erika Sallum estreava na Folha o Ciclocosmo. No seu primeiro artigo, publicado aqui, Erika introduzia ao leitor “o poder transformador de uma simples bicicleta”, e contava como o universo do ciclismo a ajudava na sua frenética luta contra o câncer. Foram 177 artigos que usavam a bicicleta como tema para debates democráticos e inclusivos, em defesa da urbanidade, do prazer de pedalar, da cultura ciclística, da saúde e das soluções que esse meio de transporte oferece à sociedade. 

Em 2021, a periodicidade deste blog havia sido comprometida pelo avanço do câncer na jornalista —diagnosticado em janeiro de 2016 nas mamas, a doença se espalhou por metástase em 2018. Apesar dos infortúnios, Erika continuou ativa tanto na bicicleta quanto na sua atividade profissional, mantendo a firmeza em defesa de seus ideais ativistas. Seus textos continuavam fortes, autênticos e lúcidos, assim como sua relação com a bicicleta —pedalou até a véspera de sua última internação, findada com sua morte na noite de 14 de agosto.

Seu último artigo para o Ciclocosmo, publicado aqui, foi escrito na madrugada de uma quinta-feira, 17 de junho, durante a infusão quimioterápica em leito hospitalar. Nele, a admirável jornalista defendia a ideia de cicloativistas de implantar um eixo cicloviário ligando São Paulo a Santos: “um passo importantíssimo se o poder público transformasse a ideia do grande eixo em realidade —melhorando a vida não só de ciclistas, mas de todo mundo que mora aqui”.

Na produção desse texto eu estava lá, dividindo —com ela e um emaranhado de fios e cateteres— o espaço de sua cama. Arrebatado, contemplei a sobrenatural capacidade de superação —suas faculdades intelectuais extrapolavam os limites da compreensão dos próprios médicos. Erika se agarrava ao amor pelo jornalismo e pelo ciclismo para alimentar a profunda convicção de que sobreviveria. Essa era sua melhor tática —viver. Parafraseando aquela música do Caetano, caminhando contra o vento, ela queria seguir vivendo, amando, escrevendo e pedalando. Por que não?

Erika Sallum durante sessão de quimioterapia no hospital A.C. Camargo (SP) em 27 de abril de 2020 (Foto: Caio Guatelli/Folhapress)

Para se pôr a salvo dos tormentos do destino, Erika Sallum repetia quase todos os dias o mesmo enredo: entregava-se, absorta, aos júbilos do ciclismo. A trama tinha início antes do amanhecer, por volta das 4h30, com a escolha de uma jersey (camisa) que exprimisse sua afeição do dia —era uma imensa coleção, quase cem. Entre tantas, fazia questão de vestir autênticas mensagens em defesa da humanidade, como a camisa do time afegão de ciclismo —além de jornalista, Erika era mestre em direitos humanos pela Universidade de Nova York e trabalhou no departamento de operações de paz da ONU.

No ato seguinte, uma insólita sinfonia —as sapatilhas estalavam contra o velho chão de madeira num vai e vem entre a sala e cozinha— geralmente acompanhada pelo ruído frenético das unhas da Tailândia, a vira-lata que perseguia a dona pelo espaçoso sobrado na Vila Madalena. 

Erika Sallum durante treino na Floresta da Tijuca (RJ), em 21 de setembro de 2019 (Foto: Caio Guatelli/Folhapress)

O clímax desse enredo começava logo após vestir o capacete sobre um de seus incontáveis caps (boné de ciclista) e trancar a porta de casa. Contrariando as regras narrativas, o êxtase era duradouro —entre 60 e 120 quilômetros— e regado a um perfeito coquetel de químicas da própria fisiologia: adrenalina, endorfina e serotonina; cada dose a depender dos compromissos que a esperavam para além daquela efêmera narrativa, a quimioterapia.

Era assim que Erika, por cerca de três anos, se esquivava dos prognósticos de sobrevida para seu câncer de mama metastático. Como ela escreveu aqui: “Pedale com diabetes, com uma perna só, com depressão… mas pedale!”. Foi assim que o fez até os limites da dor, em sua última pedalada, 35 dias antes de sua morte. Eu tive a imensurável sorte de estar ali, dividindo com ela as mais lindas experiências do viver. Arrebatado, contemplei a sobrenatural capacidade de superação —Erika se manteve a mesma fiel e ativa comunicadora, dos mais nobres ideais, até perder a fala na véspera de sua partida. Como escreveu Gabriel Garcia Márquez, em “O Amor nos Tempos do Cólera”: “é a vida mais que a morte, a que não tem limites.” 

Erika se foi, mas sua mensagem humanitária vive! Como parte desse ciclo perpétuo, assumo a autoria do blog. Mas que fique claro —esta não é uma estreia, é a continuação do Ciclocosmo de Erika Sallum, até onde minhas pedaladas aguentarem. 

Erika Sallum durante passeio de bicicleta em São Sebastião (SP), em 14 de setembro de 2019 (Foto: Caio Guatelli/Folhapress)

Citando a Erika, termino: “é sobre esse amor que nos impulsiona a cada rotação do pedivela que tratará este blog, e abordará a bicicleta em todos os seus desdobramentos —de treinamento e competições (Vive Le Tour!) a ativismo e mobilidade urbana, passando por equipamentos, nutrição e pessoas que estão mudando o planeta com suas bicicletas. Curtiu? Então escreva, mande sugestões de temas para serem abordados aqui, compartilhe os posts, conte do blog para os amigos. O Ciclocosmo é seu mais novo [bom e velho] clube de ciclismo virtual. Cola na roda e vem junto!”

A jornalista Erika Sallum e seu companheiro, o fotógrafo Caio Guatelli, na abertura da exposição fotográfica “Arremessos Urbanos”, com curadoria de Erika, no Sesc Dom Pedro II (SP) (Foto: Edo Belleza)
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