Ciclocosmo https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br Um blog para quem ama bicicletas Thu, 02 Dec 2021 18:10:08 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A todas as mulheres que peitam a vida, meus parabéns. Vocês são fantásticas! https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/a-todas-as-mulheres-que-peitam-a-vida-meus-parabens-voces-sao-foda/ https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/a-todas-as-mulheres-que-peitam-a-vida-meus-parabens-voces-sao-foda/#respond Wed, 20 Oct 2021 22:58:51 +0000 https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/erikasallum-320x213.jpg https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/?p=3288 Se hoje a participação da mulher se expande pelos mais machistas círculos da sociedade, e derruba velhos muros patriarcais, saiba que muito disso se deve à coragem e à força de mulheres que ousaram peitar as mais brutas e injustas convenções de nossa história.

Há 16 anos, quando Erika Sallum decidiu ser ciclista e frequentar os pelotões de São Paulo, encontrou um ambiente quase que exclusivo de homens héteros. Competitivos, mal aceitavam sua presença nos grupos mais fortes —provavelmente porque já sabiam que Erika os deixaria comendo poeira, especialmente nas duras subidas do Matão (ladeira íngreme da USP) e do Pico do Jaraguá. 

Mesmo assim, como tudo o que fazia, Erika deu o sangue para ocupar seu espaço e garantir a representação das minas no cenário ciclístico nacional. Em seu começo, encontrou pelo caminho outras raras e corajosas garotas, todas com a mesma dificuldade —não era apenas nos pelotões que elas sofriam o preconceito, a própria indústria da bike pouco se importava com a mulher. “Não havia roupas para pedalar feita para nós (algumas felizardas conseguiam comprar peças lá fora), muito menos equipamentos específicos para nosso corpo”, escreveu Erika, aqui no Ciclocosmo.

Com sua beleza estonteante, a ciclista esguia e de coxas fortes chegava sempre muito elegante aos pelotões —como viajava muito, trazia “da gringa” os mais elegantes conjuntos de jerseys (camisas) e  bermudas femininas— e invadia, com as outras raras minas, as irmandades de ciclistas machões que rodavam pela USP ou pelas estradas paulistas.

Aos poucos as destemidas penetras foram ganhando respeito, e novas adeptas. “O mais maravilhoso é que, enfim, percebemos nossa própria existência. Formamos grupos os mais diversos, nos unimos em torno não apenas da bike, mas do fato de sermos mulheres que amam pedalar, partimos para cima de quem não respeita nossos corpos e direitos e estamos liderando hoje uma das revoluções mais inacreditavelmente belas do universo ciclístico”, relatou Erika, também aqui no Ciclocosmo.

Desafiar os padrões e peitar quem os impõe não é para qualquer um, é ato de quem não se conforma com as injustiças da vida. Peitar é coisa de mulher resiliente, que defende seu espaço e seus direitos mesmo com tanta força contrária. Peitar não é só uma metáfora para aquelas pessoas dispostas a arriscar a pele e a dignidade pelos seus ideais. Peitar é achar o próprio significado de viver. É coisa que homem precisa aprender com a mulher, especialmente nesse país, (des)governado por um misógino —como bem sabe, desde 2003, a deputada federal Maria do Rosário (PT) e tantas outras que se sentiram atacadas pela atual política nacional.

Peitar é coisa de gente corajosa como a Erika, que se jogava contra um mundo de adversidades lutando pelo bem de todas, e mesmo baqueada, segurava sua bandeira feminista firme e de pé.

Não bastasse a agressividade de uma nação machista e desgovernada, a mulher brasileira sofre,  —ironicamente— no seio de sua coragem, com o tipo de câncer que mais mata em nosso país. De acordo com estudo estatístico do Instituto Nacional de Câncer (Inca) de 2020, o câncer de mama é disparado o que mais acomete as mulheres daqui, acumulando um total de 29,7 % de todos os tipos de câncer detectados em mulheres no Brasil.

Peitar essa doença, alertar e acolher, foi uma das mais belas lutas sociais deixadas pela Erika Sallum. Sustentar sua linda bandeira e garantir a representação das minas no maior de todos os pelotões —o da vida— é função de todos, inclusive dos homens.

Para ajudar na conscientização e combate ao câncer de mama, uma pedalada em homenagem à Erika Sallum será realizada neste sábado (23) às 9h30, com partida do gramado central do Parque do Povo (SP). O evento é organizado pela revista Go Outside e tem apoio da rede Bike Anjo e do Fuga Clube de Ciclismo.

“A todas as mulheres que pedalam, meus parabéns. Vocês são foda.” —Erika Sallum 

INFORMAÇÃO

Além da pedalada paulistana, também estão programadas pedaladas em Porto Alegre (RS), Natal (RN), Belém (PA) e Volta Redonda (RJ). 

São Paulo (SP): Homenagem à Erika Sallum —Parque do Povo, 23/10, 9h30

Porto Alegre (RS): Homenagem à Erika Sallum —Largo do Zumbi, 23/10, 16h

Natal (RN): Pedal Outubro Rosa —Leroy Merlin (Liga), 23/10, 15h

Belém (PA): Pedala Mana —São Brás, 24/10, 7h00

Volta Redonda (RJ): Pedal Bike Flor —Praça do Aero, 21/10, 15h

 

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As coisas que se manifestam sem nos avisar https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/as-coisas-que-se-manifestam-sem-nos-avisar/ https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/10/10/as-coisas-que-se-manifestam-sem-nos-avisar/#respond Sun, 10 Oct 2021 14:40:19 +0000 https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/files/2017/04/Photo-9-180x120.jpg https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/?p=3249 Fico imaginando como deve ter sido doloroso para a Erika receber a notícia de que tinha câncer de mama, e que teria um longo e duro tratamento pela frente, e que seria obrigada a abdicar das suas loucas viagens de bike pelo mundo, por um certo tempo.

Foi no finzinho de 2015, enquanto tomava banho, que Erika sentiu um caroço —já bem grande— em sua mama direita. Ela nunca me contou os detalhes daquele dia —com quem estava, onde estava, o que sentiu… Erika tentava me preservar de suas mais dolorosas angústias. Queria viver e ser vivida, sem as “limitações” trazidas pela doença.

No começo de 2016, logo após a confirmação do diagnóstico, Erika se resignou. Por um tempo —talvez um mês ou dois— se manteve fechada no quarto abraçada ao irmão, depois ao pai, enquanto assimilava sua nova vida. Certamente foi um duro processo de transformação até que ela bravamente rompesse a pupa e começasse a voar por aí, encarando de frente o mundo que tanto amava.

Com a força dos amigos e de seu amor pela bicicleta, ia pedalando às sessões de quimioterapia. Entrava no hospital de sapatilha e jersey. De cabeça erguida, com capacete nas mãos, deixava à mostra sua nova realidade —tinha câncer, mas não renunciava aos grandes prazeres de sua vida.

Erika assumiu então uma grande obra social: ressignificar a doença e se doar como exemplo, publicamente, de que “sim, dá para desviar dos perrengues e curtir a vida”. 

Em 2017, já curada de seu câncer primário, a jornalista criou, em parceria com a Folha, o Ciclocosmo. Apesar da proposição aparente ser a bike e o universo que a cerca, este blog sempre foi um espaço de defesa dos direitos humanos. Quem lê o Ciclocosmo sabe que aqui o assunto é sobre política, sobre igualdade de gênero, de raça, de classe e sobre todas as questões sensíveis ao convívio social —como a saúde da mulher.

Em junho de 2019, quando Erika e eu nos reencontramos —e nos apaixonamos—, o câncer já havia se espalhado pelos ossos. Era uma grave metástase. Os prognósticos já haviam sido dados, e ela não tinha muito o que fazer. A luta, em seu caso, não era mais em eliminar a doença, mas sim em viver da melhor forma possível os poucos anos que a restavam. 

Já calejada pela experiência de 2016, quando além dos cabelos e da auto-estima, perdeu também a companhia de um namorado ordinário que temia pela contaminação da própria saúde, Erika decidiu não comunicar a ninguém sobre sua curta sobrevida. Queria viver normalmente, sem assustar parentes e amigos. Claro que sua inabalável ética não deixava aquela peculiar escolha interferir no futuro de quem intimamente se aproximava. Comigo, por exemplo, Erika foi muito clara. Após nosso primeiro beijo, ela me segurou firme pelos ombros, olhou fundo em meus olhos e disse: “tenho metástase. Se quiser seguir em frente, ao meu lado, é importante que aceite e seja muito sincero comigo. Não tenho mais tempo a perder”.

Sou eternamente grato à Erika. Nos dois anos e dois meses que convivemos e namoramos, findados com sua morte, aprendi valores que os 41 anos anteriores não haviam me trazido.

Ficar tão triste por algo que se foi, indica que foi significante enquanto existiu. Não importa o quanto durou, mas como foi vivido. E posso dizer com todo orgulho, foram os dois anos e dois meses mais bem vividos de toda minha vida.

Câncer de mama é o tipo de câncer que mais mata mulheres no Brasil. Como alerta ou como alento, certamente Erika publicaria aqui algum lindo texto falando do tema.

Para o oncologista Vladmir Lima —médico da Erika, e que ela tanto amava—, do hospital A.C. Camargo Câncer Center, apesar da evolução do tratamento do câncer de mama, “é importante uma mudança de comportamento. Criar na mulher a consciência de que a mama é um órgão que merece atenção especial”. 

Doutor Vladmir indica que o auto-exame —com o qual a Erika descobriu seu tumor— detecta o câncer já em evolução, e que esse método, apesar de super importante, não é o caminho ideal para a contenção da doença. Cada mulher deve se preocupar em fazer um acompanhamento médico preventivo desde cedo. O conhecimento sobre os fatores de risco, sejam genéticos (histórico familiar) ou de comportamento (tabagismo, alcoolismo, sedentarismo, entre outros), deve ser tratado com atenção para determinar quando cada mulher precisa começar a prevenção com mais afinco. “Algumas devem começar já aos 20 anos de idade”, alerta o doutor.

Ter o acompanhamento de um ginecologista e mastologista e realizar mamografia preventiva, é direito de toda mulher brasileira. Tais serviços, hoje já amplamente oferecidos e mesmo assim ainda subutilizados pela população, podem ser obtidos gratuitamente através do SUS em hospitais públicos. Tal prática é essencial para a saúde da mulher, e deve ser valorizada não apenas por ela, como também pelos homens que a acompanham —marido, namorado, pai, irmãos ou amigos.

Carinho e amor são muito importantes, salvam a dignidade feminina tanto na prevenção quanto no tratamento.

INFORMAÇÃO

Para entender mais sobre fatores de risco, prevenção e tratamento, uma boa fonte de informação é essencial. O oncologista Vladmir Lima indica a leitura da Cartilha do Câncer de Mama do INCA (Instituto Nacional de Câncer). Clique aqui para saber mais.

 

 

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Cinema, pipoca, cerveja e… bicicleta! https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/cinema-pipoca-cerveja-e-bicicleta/ https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/cinema-pipoca-cerveja-e-bicicleta/#respond Wed, 29 Sep 2021 03:01:12 +0000 https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/Born-From-Junk-1-320x213.jpg https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/?p=3213 A ciclovia do rio Pinheiros receberá neste final de semana (2 e 3/10), o festival Rocky Spirit de documentários sobre a vida ao ar livre. Ótima oportunidade para experimentar um jeito inusitado de ir ao cinema —curtindo o rolê de bike no percurso de 21,5Km entre as duas “salas” de projeção.

A 11ª edição do festival, que tradicionalmente acontece no gramado de parques ou na areia das praias, ganhou sua primeira versão ride-in (entrada pedalando) em dois pontos da ciclovia —um telão será montado no limite norte (Jaguaré), sob viaduto da Marginal Pinheiros, e o outro telão estará no estacionamento do limite sul (Interlagos).

“A ideia é fazer o pessoal curtir a programação nos dois pontos da ciclovia, se deslocando de bike pelos 21,5Km que separam os telões”, diz a curadora Andrea Estevam. Para ir de um ponto a outro, o ciclista deverá usar as ciclovias das duas margens do rio Pinheiros, interligadas por ciclofaixas nas pontes Cidade Jardim e João Dias.

As três base-jumpers (paraquedistas) de “Jump to Zero” (foto: divulgação)

Os horários das sessões de sábado e de domingo serão os mesmos —das 9 às 13h no Jaguaré, das 14 às 17h em Interlagos e das 18 às 21h novamente no Jaguaré. Serão projetados 43 filmes, distribuídos separadamente pelos dois telões. Quem quiser assistir a todos, terá que fazer o rolê de ida e volta, totalizando 43Km de pedaladas —que ótimo! Assim você pode abusar da pipoca, sem culpa! 

Além da pipoca e dos tradicionais lanches saudáveis, cafés e isotônicos vendidos nos quiosques da ciclovia, o evento contará com a distribuição gratuita de água mineral e —delirem— cerveja! Sim, cerveja de graça para tomar deitado nos pufes da ciclo enquanto você curte o cineminha! (mas é cerveja zero-álcool). 

Os títulos trazem uma variedade de enredos esportivos praticados ao ar livre —o festival não traz apenas filmes sobre bikes; tem também filmes sobre skate, escalada, paraquedismo, canoagem… Da superação pessoal à aventura extrema, todos eles são recheados de histórias emocionantes e de belezas naturais de tirar o fôlego.

Alguns são pura poesia, como o canadense “Spirit of Adventure” —em seus 5 minutos o filme nos hipnotiza com deslumbrantes paisagens naturais exploradas por Mike e sua bike. Ou como o americano “Jump to Zero”, que conta a saga de três mulheres paraquedistas que usam suas bikes para alcançar o cume das montanhas, de onde se jogam embriagadas para vôos alucinantes. 

Paisagens do filme “Spirit of Adventure” são impressionantes (foto: divulgação)

O brasileiro “Confie na Bike!” traz a emocionante narrativa em primeira pessoa da jornalista Erika Sallum (criadora deste blog) sobre sua luta contra o câncer. No filme de 3 minutos, Erika enfatiza o importante papel que a bicicleta pode desempenhar na vida de quem trava duras batalhas físicas ou psicológicas.

De todos, um dos que mais me tocou, foi o americano “Born from Junk”. O filme conta a história dos caras que inventaram o mountain-bike. Imagens de arquivo mostram jovens desocupados da década de 1980 e suas bikes adaptadas rasgando as paisagens vertiginosas das montanhas do Colorado. Em contraponto, os pródigos inventores, já bem tiozinhos, narram em entrevistas atuais as suas memórias do arco-da-velha: “éramos um bando de foras-da-lei com muito tempo livre e milhares de hectares de terras selvagens para explorar”, relata um ciclista velhinho enquanto, sabiamente, curte sua breja.

Cola lá, pedalando, para também curtir uma breja (ou isotônico)!

ATUALIZAÇÃO

A Ambev, fornecedora da cerveja Heinekken 0.0 (zero-álcool), informa que a distribuição da bebida se encerrará às 14h dos dois dias de evento.

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Erika Sallum, que sua mensagem viva! https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/12/erika-sallum-que-sua-mensagem-viva/ https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/2021/09/12/erika-sallum-que-sua-mensagem-viva/#respond Sun, 12 Sep 2021 03:05:12 +0000 https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/erika004-320x213.jpg https://ciclocosmo.blogfolha.uol.com.br/?p=3135 Em 27 de abril de 2017, a jornalista Erika Sallum estreava na Folha o Ciclocosmo. No seu primeiro artigo, publicado aqui, Erika introduzia ao leitor “o poder transformador de uma simples bicicleta”, e contava como o universo do ciclismo a ajudava na sua frenética luta contra o câncer. Foram 177 artigos que usavam a bicicleta como tema para debates democráticos e inclusivos, em defesa da urbanidade, do prazer de pedalar, da cultura ciclística, da saúde e das soluções que esse meio de transporte oferece à sociedade. 

Em 2021, a periodicidade deste blog havia sido comprometida pelo avanço do câncer na jornalista —diagnosticado em janeiro de 2016 nas mamas, a doença se espalhou por metástase em 2018. Apesar dos infortúnios, Erika continuou ativa tanto na bicicleta quanto na sua atividade profissional, mantendo a firmeza em defesa de seus ideais ativistas. Seus textos continuavam fortes, autênticos e lúcidos, assim como sua relação com a bicicleta —pedalou até a véspera de sua última internação, findada com sua morte na noite de 14 de agosto.

Seu último artigo para o Ciclocosmo, publicado aqui, foi escrito na madrugada de uma quinta-feira, 17 de junho, durante a infusão quimioterápica em leito hospitalar. Nele, a admirável jornalista defendia a ideia de cicloativistas de implantar um eixo cicloviário ligando São Paulo a Santos: “um passo importantíssimo se o poder público transformasse a ideia do grande eixo em realidade —melhorando a vida não só de ciclistas, mas de todo mundo que mora aqui”.

Na produção desse texto eu estava lá, dividindo —com ela e um emaranhado de fios e cateteres— o espaço de sua cama. Arrebatado, contemplei a sobrenatural capacidade de superação —suas faculdades intelectuais extrapolavam os limites da compreensão dos próprios médicos. Erika se agarrava ao amor pelo jornalismo e pelo ciclismo para alimentar a profunda convicção de que sobreviveria. Essa era sua melhor tática —viver. Parafraseando aquela música do Caetano, caminhando contra o vento, ela queria seguir vivendo, amando, escrevendo e pedalando. Por que não?

Erika Sallum durante sessão de quimioterapia no hospital A.C. Camargo (SP) em 27 de abril de 2020 (Foto: Caio Guatelli/Folhapress)

Para se pôr a salvo dos tormentos do destino, Erika Sallum repetia quase todos os dias o mesmo enredo: entregava-se, absorta, aos júbilos do ciclismo. A trama tinha início antes do amanhecer, por volta das 4h30, com a escolha de uma jersey (camisa) que exprimisse sua afeição do dia —era uma imensa coleção, quase cem. Entre tantas, fazia questão de vestir autênticas mensagens em defesa da humanidade, como a camisa do time afegão de ciclismo —além de jornalista, Erika era mestre em direitos humanos pela Universidade de Nova York e trabalhou no departamento de operações de paz da ONU.

No ato seguinte, uma insólita sinfonia —as sapatilhas estalavam contra o velho chão de madeira num vai e vem entre a sala e cozinha— geralmente acompanhada pelo ruído frenético das unhas da Tailândia, a vira-lata que perseguia a dona pelo espaçoso sobrado na Vila Madalena. 

Erika Sallum durante treino na Floresta da Tijuca (RJ), em 21 de setembro de 2019 (Foto: Caio Guatelli/Folhapress)

O clímax desse enredo começava logo após vestir o capacete sobre um de seus incontáveis caps (boné de ciclista) e trancar a porta de casa. Contrariando as regras narrativas, o êxtase era duradouro —entre 60 e 120 quilômetros— e regado a um perfeito coquetel de químicas da própria fisiologia: adrenalina, endorfina e serotonina; cada dose a depender dos compromissos que a esperavam para além daquela efêmera narrativa, a quimioterapia.

Era assim que Erika, por cerca de três anos, se esquivava dos prognósticos de sobrevida para seu câncer de mama metastático. Como ela escreveu aqui: “Pedale com diabetes, com uma perna só, com depressão… mas pedale!”. Foi assim que o fez até os limites da dor, em sua última pedalada, 35 dias antes de sua morte. Eu tive a imensurável sorte de estar ali, dividindo com ela as mais lindas experiências do viver. Arrebatado, contemplei a sobrenatural capacidade de superação —Erika se manteve a mesma fiel e ativa comunicadora, dos mais nobres ideais, até perder a fala na véspera de sua partida. Como escreveu Gabriel Garcia Márquez, em “O Amor nos Tempos do Cólera”: “é a vida mais que a morte, a que não tem limites.” 

Erika se foi, mas sua mensagem humanitária vive! Como parte desse ciclo perpétuo, assumo a autoria do blog. Mas que fique claro —esta não é uma estreia, é a continuação do Ciclocosmo de Erika Sallum, até onde minhas pedaladas aguentarem. 

Erika Sallum durante passeio de bicicleta em São Sebastião (SP), em 14 de setembro de 2019 (Foto: Caio Guatelli/Folhapress)

Citando a Erika, termino: “é sobre esse amor que nos impulsiona a cada rotação do pedivela que tratará este blog, e abordará a bicicleta em todos os seus desdobramentos —de treinamento e competições (Vive Le Tour!) a ativismo e mobilidade urbana, passando por equipamentos, nutrição e pessoas que estão mudando o planeta com suas bicicletas. Curtiu? Então escreva, mande sugestões de temas para serem abordados aqui, compartilhe os posts, conte do blog para os amigos. O Ciclocosmo é seu mais novo [bom e velho] clube de ciclismo virtual. Cola na roda e vem junto!”

A jornalista Erika Sallum e seu companheiro, o fotógrafo Caio Guatelli, na abertura da exposição fotográfica “Arremessos Urbanos”, com curadoria de Erika, no Sesc Dom Pedro II (SP) (Foto: Edo Belleza)
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