‘Outro Rolê’ denuncia segregação cultural paulistana

Recém lançado, o documentário “Outro Rolê” esfrega em nossa cara o quanto a bicicleta e suas capacidades de inclusão social são desprezadas pelas políticas públicas e por grande parte dos próprios paulistanos —usar a bicicleta para deslocamentos em São Paulo ainda é condição de inferioridade, perigo, medo e preconceito, quando já deveria ser o contrário!

O filme começa revelando o cenário caótico da cidade —uma vista aérea mostra a trama de cimento e asfalto dominada pelo ruído do trânsito: motores, buzinas e sirenes. Nos instantes seguintes é apresentada uma sequência de ação; são planos curtos e sobrepostos de ciclistas se aventurando pelas perigosas “trilhas” abertas entre carros, sarjetas, buracos e postes. A cena, onde o ciclista urbano é protagonista, parece retirada da tela de um videogame que desafia os limites humanos e subverte a lei da gravidade —só que não! Neste caso, a subversão é ao Código de Trânsito Brasileiro, que prevê a bicicleta como o veículo a ser respeitado, não desafiado.

O enredo revela uma luta do ciclista urbano contra uma cidade que o ignora e o exclui. Uma horda de motoristas violentos, políticos desinteressados e um terreno hostil lembra roteiros de ficção. Mas a narrativa não é nada fabulosa nem extraordinária, é a pura realidade, nua e crua, em exibição pública e gratuita em cada esquina da cidade.

Durante todo o filme, relatos dão conta do descaso do poder público e da cegueira da sociedade para o universo da mobilidade sustentável. 

Ao apontar as lentes para a periferia, a produção mostra líderes comunitários clamando por ciclovias e oportunidades enquanto uma multidão de ciclistas suburbanos ocupa o trânsito desordenado que liga pobres guetos aos arranha-céus do centro financeiro nacional.

A seguir, um bate-papo com o diretor do filme, o cineasta Guilherme Valiengo:

Quem são os personagens de seu filme?

Guilherme Valiengo: Durante todo o processo desse projeto, acredito que a cidade de São Paulo se revela como um dos personagens principais do filme. Através das histórias e situações vividas ao longo do documentário, conseguimos entender um pouco do processo burocrático dentro das sub-prefeituras e também da luta dos cicloativistas em fazer com que as ciclovias saiam do papel. A cidade de São Paulo acaba sendo retratada nas regiões mais extremas, nas franjas da cidade, sem deixar de mostrar o que acontece na região central.

Por que existem muito mais carros do que bicicletas rodando em São Paulo?

Guilherme Valiengo: A cidade desde sempre foi pensada muito mais para os carros do que para as pessoas. A cultura do automóvel foi se desenvolvendo ao longo de muitos anos em todo o país. Pensar a cidade de uma maneira integrada entre todos os modais é um desafio muito grande, principalmente em São Paulo onde o crescimento desordenado acaba se impondo. O que vemos hoje é uma tentativa de arrumar a casa, uma necessidade de dividir os espaços e entender a cidade como uma rede que se conecta de todos os lados. Hoje o carro acaba sendo mais problema do que solução, a cidade não comporta mais automóveis como antigamente. As necessidades são outras e a cidade tem se transformado aos poucos para tentar trazer um ciclista a mais, um pedestre a mais, e, consequentemente, menos carros nas ruas. O aumento de estruturas cicloviárias e um transporte público eficiente são medidas que podem ajudar a diminuir o número de carros. Porém, estamos falando de uma realidade que ainda é para poucos. Essa não é a realidade de quem vive nos extremos da cidade. Quando a moradia fica distante do trabalho e a infra-estrutura não existe, cada um vai se virar do jeito que der.

O que falta para que a bicicleta seja respeitada e ganhe credibilidade em São Paulo?

Guilherme Valiengo: Acredito que seja uma combinação de vontade política, pressão popular, educação e readequação urbana. Existe uma questão que é o tamanho da indústria automobilística em todo o mundo, é muito dinheiro em jogo —carros a menos significam menos pessoas comprando carros, fazendo seguro, comprando combustível… O filme mostra um pouco o trabalho e a luta diária dos cicloativistas que batalham por uma cidade conectada e segura para todos.

O que significa a bicicleta para a periferia?

Guilherme Valiengo: Lá estão bairros onde não existem ciclovias, sistema de compartilhamento de bicicleta, ruas sinalizadas, pavimentação e opções de entretenimento. Ainda assim, a bicicleta está presente em vários aspectos. A bicicleta é uma opção de lazer que acaba suprindo a falta de equipamentos públicos para os jovens periféricos. Além do lazer, diariamente inúmeros moradores cruzam a cidade de bicicleta; são pessoas comuns que utilizam a bike com o objetivo de economizar tempo e dinheiro no final do mês.

ONDE ASSISTIR: https://planetdoc.org/a-different-spin/