No dilema energético, bicicleta ‘a feijão’ é escolha certa

“Basta de nos matarmos com carbono. Basta de tratar a natureza como uma latrina. Basta de queimar, perfurar e minerar cada vez em maior profundidade. Estamos cavando nossa própria cova”, alertou o secretário-geral da ONU, António Guterres, na abertura da COP26.

Se depender das necessidades, e do discurso de Guterres, está posto: vivemos um ponto de inflexão histórica onde o fogo não é mais a grande arma da existência humana, mas sua grande armadilha.  Os alertas estão em todo canto —da natureza às manchetes de jornais—, viver no mundo movido a combustão está cada vez mais sufocante.

Tão quentes quanto nosso temido destino, as alternativas para geração de energia começam a fervilhar. A transição energética para fontes renováveis aparece como a solução da vez. Não faltam planos para mitigar as mudanças climáticas, e a descarbonização da economia passou a ditar os contratos futuros —usinas eólicas e fotovoltaicas são agora as novas apostas de empresas que ainda chamamos de “gigantes do petróleo”. 

Pesquisa da Agência Européia do Ambiente indica que 77% das necessidades energéticas dos europeus são supridas com recursos não renováveis—petróleo, gás, carvão e nuclear. Triste comprovação para uma cultura que sempre esteve à frente de seu tempo, e que ainda mantem a liderança no total das emissões cumulativas de CO2 (desde a Revolução Industrial). Mas essa realidade já tem data para acabar. A partir de 2035, toda frota de carros daquele continente deverá ser movida a energia elétrica. Iniciativa semelhante acontece com a indústria da aviação comercial —protótipos de aviões a bateria já testam suas capacidades de sustentabilidade.

Aproveitando o embalo, a indústria da bicicleta resolveu entrar “na roda” desses veículos “limpos” e já inunda o mercado com bikes movidas a “pedal assistido”. A propaganda promete agilidade sem perder as características limpas da velha bicicleta, mas a nova opção é na realidade muito mais pesada e carrega consigo um punhado de compostos químicos de potencial risco —as baterias de íons de lítio. Assim como o calor do fogo, as armadilhas das novas opções energéticas “limpas” são perigosas e precisam ser conhecidas para impedir o surgimento de novas crises ambientais e sociais.

Para Flavio de Mirando Ribeiro, doutor em Ciências Ambientais e professor da FIA, a transição energética para os recursos renováveis também oferece riscos e se revela não tão sustentável como a propaganda promete. “Baterias que alimentam veículos elétricos são feitas de metais raros, matéria prima escassa a ser minerada em grande escala, como cobalto, manganês e alumínio. Isso causa grande impacto ambiental”, diz Ribeiro, que vai além: “os países onde estão as maiores reservas desses minerais são famosos por práticas inadequadas de trabalho ou até mesmo escravidão. É um risco social que deve ser avaliado por quem acha que veículo elétrico é garantia de sustentabilidade”.

Para o professor, apesar dos riscos, a transição energética para as fontes renováveis é vantajosa, mas há de se criar políticas públicas que regulem importantes soluções. Reciclagem e reuso de baterias devem ser normatizados para evitar um novo colapso dos recursos naturais, e a rastreabilidade da matéria prima deve garantir a origem humanitária do material minerado —mineradores devem ter seus direitos respeitados.

Preocupada com a sustentabilidade, a Specialized —indústria americana de bicicletas que vende modelos elétricos no Brasil— oferece um serviço de coleta de baterias deterioradas para o consumidor brasileiro. As peças recolhidas são enviadas para a única empresa nacional capaz de separar os diferentes metais raros presentes na bateria —os metais são então vendidos para outros usos. Apesar do processo ter o nome de reciclagem, as baterias que não são reutilizadas também não são recicladas em forma de novas baterias. Ainda não há em nosso país nenhuma indústria capaz de reciclar completamente —nem mesmo de produzir—  baterias de íon de lítio, tipo usado para alimentar veículos elétricos. 

O professor Ribeiro comenta, “sustentabilidade é um adjetivo relativo, depende de quanto cada um está disposto a mudar os próprios hábitos. Nesse caso, a bicicleta ‘movida a feijão’ [força humana] é a melhor alternativa”.