Na contramão do bom senso
Mesmo às vésperas da 26ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (Cop 26), o Governo de São Paulo publicou duas normas que limitam o uso da bicicleta no ambiente urbano, seguindo assim na contramão das tendências mundiais de transporte sustentável —um dos temas centrais da Conferência.
A primeira norma, publicada no último dia 15 pela Secretaria de Logística e Transportes, define, através da Portaria 122, os limites de uso da bicicleta nas estradas paulistas.
A nova instrução legal proíbe “comboios de ciclistas” de circularem nas rodovias estaduais sem prévia autorização e pagamento de taxa. De acordo com o documento, poderão fazer uso de estradas e rodovias apenas “transeuntes que utilizam os ciclos como meio de transporte, quais sejam, deslocamento ao trabalho e trânsito comum, ou seja, aqueles alheios às atividades de desporto” —ou seja, pelotões de ciclismo de estrada, profissionais e amadores, que sustentam parte da cultura da bicicleta nesse país, vocês perderam mais uma! Como se já não bastasse a limitação de horário para ciclistas nas ruas da USP —4h às 6h30— e a ausência completa de centros de treinamento para ciclismo de estrada na capital —o velódromo da USP é uma ruína—, a cultura da bicicleta sofre agora com mais um ataque do Estado.
Já a segunda norma, publicada pelo Metrô de São Paulo e pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), reduz o horário de acesso de bicicletas às estações e aos trens. A partir da próxima segunda-feira (1/11), bicicletas não poderão mais ser transportadas nos vagões entre 10h e 16h. De acordo com a Central de Informações do Metrô, o horário de transporte de bicicletas “voltará ao normal”. Só serão aceitas bicicletas nos vagões entre 20h30 e meia-noite.
A assessoria de imprensa do Metrô diz desconhecer a nova norma de limitação de horários para bicicletas nos seus trens (mesmo após a ampla divulgação pela própria Companhia). Normal…
Questionado por telefone sobre a Portaria 122, o governador João Doria disse que estava em viagem ao exterior —o governador visita feira em Dubai (Emirados Árabes Unidos)— e preferiu delegar a resposta à Secretaria de Comunicação. Por meio de nota, o governo informou que “cumpre a legislação vigente no país e no estado de São Paulo, em especial o CTB [Código de Trânsito Brasileiro]”.
Para Daniel Guth, diretor do Aliança Bike (Associação Brasileira do Setor de Bicicletas), “o texto da Portaria 122 não é claro e está sujeito a interpretações diversas”. Guth indica ainda que “a Portaria trata de regra que entra em conflito com o CTB”, e ressalta que o Aliança Bike já entrou com pedido no DER (Departamento de Estradas e Rodagem) e no Ministério Público Estadual para suspensão dos efeitos da nova norma.
O mais incrível é que a feira que Doria visita em Dubai trata de clima, oportunidades, sustentabilidade e mobilidade —ou seja, os grandes valores da bicicleta para um mundo que clama por melhores condições de saúde e transporte. Além disso, estamos a três dias da inauguração da Cop 26, a conferência da ONU que tem como grande ambição atualizar os compromissos ambientais assumidos pelo Acordo de Paris (2015).
O que mais precisa ser dito para convencer a administração pública que sua direção está na contramão dos caminhos sustentáveis, que são os veículos automotores que precisam ser restringidos, não as bicicletas? Como já foi dito aqui, para conter a poluição do ar, países desenvolvidos estão trocando os carros pela bicicleta já faz um certo tempo.
O ciclismo —como esporte, lazer ou transporte— tem função primordial na modificação dos costumes de uma sociedade que cada vez mais morre sufocada pela fumaça —segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), a poluição do ar está entre as 10 principais causas de morte no Brasil.
Governos que não se adequarem às questões climáticas, que não incentivarem o acesso universal ao transporte sustentável e aos novos costumes de preservação ambiental, são como carros movidos a gasolina —vilões do presente, lixo do futuro.