Sob ameaça do Talibã, ciclistas afegãs queimam suas histórias

Com o retorno ao poder do grupo fundamentalista Talibã, 20 anos após a invasão americana do Afeganistão, mulheres ciclistas eliminaram todos seus registros neste esporte. Temendo as severas punições da sharia (lei religiosa), entre elas a morte por apedrejamento, as ciclistas queimaram fotografias, diplomas, troféus e todo tipo de equipamentos de ciclismo tão logo as Forças dos Estados Unidos se retiraram do país, há menos de um mês.

A brutal tomada da capital Cabul pelos combatentes talibãs, em 15 de agosto, e o bloqueio ao aeroporto internacional, colocou ciclistas e outros atletas, assim como músicos e artistas que não se encaixam nas doutrinas da sharia, em situação de vulnerabilidade. Queimar seu passado e se submeter ao regime é a única opção aos que não conseguiram embarcar na caótica retirada americana.

“O ciclismo acabou no Afeganistão”, lamenta um membro da Federação Afegã de Ciclismo. Para ele, a proibição de mulheres no esporte e as restrições aos homens —o Talibã proibiu o uso de roupas justas e shorts por qualquer indivíduo— impede o futuro do esporte no país.

Pelotão do time afegão de ciclismo feminino passa, em 19 de abril de 2014, pelo sítio arqueológico de Bamiyan, no Afeganistão – patrimônio mundial pela Unesco (Foto: Shannon Galpin)

A ativista americana Shannon Galpin, que trabalha há mais de uma década com apoio humanitário às ciclistas afegãs —entre outras ações, Shannon conseguiu patrocínios ao time nacional de ciclistas afegãs e produziu o documentário “Afghan Cycles”—, lamenta a atual situação: “são as primeiras mulheres na história desse país a usar bicicletas por esporte e reivindicar seu espaço público. Hoje, essas jovens não podem mais se identificar como ciclistas ou atletas, do contrário tornam-se alvos do regime Talibã.”

Os registros de barbáries contra o povo afegão são seculares. A história descreve os primeiros morticínios ideológicos contra tribos afegãs no século 13, por grupos mongóis guiados pelo imperador Gengis Khan. “De forma infame, Gengis Khan deixou para trás pirâmides de cabeças humanas nas suas conquistas pelo Afeganistão”, descreveu a antropóloga afegã Amineh Ahmed em artigo para o periódico “Cambridge Journal of Anthropology”. Desde então, as atrocidades contra esse povo nunca mais cessaram.

Na Idade Moderna, as disputas sangrentas pelo território passaram pelas mãos de diversos líderes tribais em diferentes guerras, quase sempre financiadas por interesses estrangeiros —Inglaterra, Rússia (e também União Soviética), China, Paquistão, Iran e Arábia Saudita guardam suas culpas. Estados Unidos, última nação a abandonar sua guerra por lá, invadiu o Afeganistão em 2001 à procura do terrorista Osama Bin Laden —líder do grupo Al Qaeda, escondido ali pelo primeiro regime do então recém criado grupo Talibã— logo após os atentados de 11 de setembro.

Por 20 anos, e pelos governos de quatro presidentes (George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden), os EUA tentaram implantar a democracia e afastar líderes extremistas daquele país. Em meio a uma mixórdia política e muita corrupção, o regime democrático levou ao país grandes mudanças de comportamento, em especial para as mulheres. A desobrigação do uso da burca foi seguida por uma série de liberdades, antes banidas pelo extremismo islâmico do Talibã. O acesso à educação, às artes e ao esporte foi novidade para muitas gerações de afegãs e a única realidade para as gerações mais recentes, nascidas no período de ocupação americana. Tudo isso acabou num estalo.

“O sonho acabou. Voltamos 20 anos ao passado. Como mulher, não tenho o direito de sair de casa, de estudar ou de trabalhar. As mulheres hoje são obrigadas a se manter trancafiadas em casa. Pedalar é ilegal no regime Talibã”, disse uma ciclista que começou a pedalar em 2018 e já  fazia parte da seleção afegã de ciclismo.

A cicloativista americana Shannon Galpin (terceira a partir da esquerda) participa de treino com ciclistas mulheres no Afeganistão (Foto: Shannon Galpin)

Outra ciclista, iniciada profissionalmente no esporte há 2 anos, disse: “o ciclismo teve diversos efeitos no meu estilo de vida. Melhorou meu corpo, minha alma e meu conhecimento.” O seu maior sonho, até a retomada do Talibã, era competir as Olimpíadas de Paris em 2024.

Galpin relata que as ciclistas que conseguiram escapar junto com a retirada americana deixaram tudo para trás, levaram apenas uma pequena bolsa de mão. “As que ficaram foram obrigadas a destruir todo seu histórico no esporte”.

COMO AJUDAR

As afegãs destacadas nesse texto —e que tiveram suas identidades preservadas por questões de segurança— como também todas as ciclistas daquele país, podem ser beneficiadas por projetos de auxílio humanitário, como o anunciado pela ativista Shannon Galpin, o “Evacuação das Mulheres Ciclistas Afegãs”.