Mostra sobre a bicicleta na Europa escancara o atraso brasileiro
A arriscada aventura de pedalar nas cidades brasileiras não é nenhuma novidade. Por repetidas vezes, aqui neste Ciclocosmo, a jornalista Erika Sallum nos alertou da dura realidade vivida no Brasil por quem escolhe se locomover de bicicleta. No último Dia Internacional da Mulher, Erika escreveu: “por aqui, vemos cada vez mais mulheres vencendo seus medos para praticar um ato de coragem absurda: pedalar neste país machista, violento e onde governantes e motoristas ainda relutam em admitir o poder que tem a bike de mudar vidas e nações inteiras”.
É impressionante o tamanho do prejuízo social causado pelas atuais políticas públicas que cercam o universo da bicicleta neste país. As origens desse drama, em sua maioria, estão na cultura retrógrada que prioriza a indústria do automóvel, na política nacional que insiste há anos na educação de baixa qualidade, e numa ideologia (hoje no comando) que nega os alertas sociais e ambientais.
Imagine poder sair de bicicleta todos os dias para trabalhar, estudar ou se divertir, sabendo que pelo caminho não será xingado ou ameaçado, e que suas chances de ser atropelado ou roubado serão muito pequenas. Imagine ainda mais —ganhar uma grana do governo para trocar o uso do carro pelo uso da bicicleta, ou então receber todo mês um voucher do seu patrão para gastar no que quiser dentro de sua bicicletaria preferida. Utopia? Não, isso existe! Mas claro, não é aqui.
Na França, por exemplo, o governo desenvolveu uma política de incentivo ao uso da bicicleta para o desconfinamento pandêmico —investiu 20 milhões de Euros no financiamento de reparos de bikes em desuso (leia mais aqui). No Reino Unido, o governo oferece subsídios de até 39% na compra de bikes através do programa Cyclescheme. O incentivo existe desde 1999 e é concedido para quem escolhe a bicicleta para os deslocamentos urbanos a trabalho. Na comuna de Pesaro, costa leste da Itália, o governo local decidiu dar à bicicleta o protagonismo no transporte urbano. Ruas foram estreitadas e centenas de vagas de carros foram eliminadas pelo projeto Bicipolitana.
Os resultados de políticas virtuosas como essas podem ser vistos na mostra fotográfica “Bicicleta, Identidade Cultural”, da jornalista Denise Silveira. Seu ensaio fotográfico nos traz belos exemplos de como governos e cidadãos europeus aproveitam as grandiosas capacidades da bike para tornar a vida urbana muito mais pacífica, saudável, econômica, sustentável e feliz, e escancara o atraso brasileiro em fazer da bicicleta um veículo de respeito, capaz de melhorar a vida dos cidadãos.
Após apreciar as obras de Denise no Unibes Cultural —24 fotografias e o curta-metragem documental “Alma de Bicicleta”—, é possível que o espectador sinta até uma inveja dessa realidade remota e tão fecunda ao compará-la com a nossa, visceral e tão mambembe. No mínimo desperta-se uma indignação em ter que encarar, novamente, a guerra latente contra o uso da bicicleta em território nacional.
Nos tantos flagras que Denise reuniu em três viagens pela Europa (realizadas em 2016, 2018 e 2019), fica evidente uma relação inata do europeu com a bicicleta, cercada por respeito e admiração. O ensaio de Denise começou despretensioso, em 2016 na Bélgica, num reencontro com velhos amigos —pais de seu falecido companheiro, o músico belga Jeroen Raedschelders, morto em 1997 em acidente automobilístico— que apresentaram à jornalista alguns redutos flamengos pouco conhecidos por turistas.
Ao fim da primeira experiência, toda clicada em celular, Denise percebeu que a maioria dos seus registros captava bicicletas no quadro fotográfico. Eram situações rotineiras, flagras de uma vida real (e encantadora). A jornalista passou então a investir no tema, e dedicou atenção especial às bicicletas nas duas viagens seguintes. A cultura ciclística foi então registrada na Alemanha, Bélgica, Irlanda, Inglaterra, Holanda e Rússia.
Para Denise, sua experiência ficou marcada pelo padrão de respeito conferido à bicicleta por governos, indústria e cidadãos daquele continente. Ao analisar seu ensaio, a jornalista exalta a importância do espaço dedicado exclusivamente aos ciclistas na estrutura urbana, como as “corona lanes” —corredores e estacionamentos exclusivos para bikes, criados pela prefeitura de Londres para a época da pandemia.
Ao comparar a realidade européia à nossa, Denise é certeira: “falta um movimento do governo e do empresariado para cuidar do ciclista comum, daqueles que precisam usar a bike para trabalhar. Imagina uma mulher, mãe, ter que sair pedalando da periferia e atravessar uma ponte lotada de carros para alcançar seu trabalho no centro. É uma loucura fazer isso por aqui! Nossa malha cicloviária, além de limitada, é mal projetada, pouco inclusiva, machista”.
INFORMAÇÕES
Exposição: Bicicleta, Identidade Cultural
Quando: Até 30 de setembro, com horário marcado pelo website
Onde: Unibes Cultural (ao lado da estação Sumaré do metrô)
Quanto: Gratuito