Erika Sallum, que sua mensagem viva!
Em 27 de abril de 2017, a jornalista Erika Sallum estreava na Folha o Ciclocosmo. No seu primeiro artigo, publicado aqui, Erika introduzia ao leitor “o poder transformador de uma simples bicicleta”, e contava como o universo do ciclismo a ajudava na sua frenética luta contra o câncer. Foram 177 artigos que usavam a bicicleta como tema para debates democráticos e inclusivos, em defesa da urbanidade, do prazer de pedalar, da cultura ciclística, da saúde e das soluções que esse meio de transporte oferece à sociedade.
Em 2021, a periodicidade deste blog havia sido comprometida pelo avanço do câncer na jornalista —diagnosticado em janeiro de 2016 nas mamas, a doença se espalhou por metástase em 2018. Apesar dos infortúnios, Erika continuou ativa tanto na bicicleta quanto na sua atividade profissional, mantendo a firmeza em defesa de seus ideais ativistas. Seus textos continuavam fortes, autênticos e lúcidos, assim como sua relação com a bicicleta —pedalou até a véspera de sua última internação, findada com sua morte na noite de 14 de agosto.
Seu último artigo para o Ciclocosmo, publicado aqui, foi escrito na madrugada de uma quinta-feira, 17 de junho, durante a infusão quimioterápica em leito hospitalar. Nele, a admirável jornalista defendia a ideia de cicloativistas de implantar um eixo cicloviário ligando São Paulo a Santos: “um passo importantíssimo se o poder público transformasse a ideia do grande eixo em realidade —melhorando a vida não só de ciclistas, mas de todo mundo que mora aqui”.
Na produção desse texto eu estava lá, dividindo —com ela e um emaranhado de fios e cateteres— o espaço de sua cama. Arrebatado, contemplei a sobrenatural capacidade de superação —suas faculdades intelectuais extrapolavam os limites da compreensão dos próprios médicos. Erika se agarrava ao amor pelo jornalismo e pelo ciclismo para alimentar a profunda convicção de que sobreviveria. Essa era sua melhor tática —viver. Parafraseando aquela música do Caetano, caminhando contra o vento, ela queria seguir vivendo, amando, escrevendo e pedalando. Por que não?
Para se pôr a salvo dos tormentos do destino, Erika Sallum repetia quase todos os dias o mesmo enredo: entregava-se, absorta, aos júbilos do ciclismo. A trama tinha início antes do amanhecer, por volta das 4h30, com a escolha de uma jersey (camisa) que exprimisse sua afeição do dia —era uma imensa coleção, quase cem. Entre tantas, fazia questão de vestir autênticas mensagens em defesa da humanidade, como a camisa do time afegão de ciclismo —além de jornalista, Erika era mestre em direitos humanos pela Universidade de Nova York e trabalhou no departamento de operações de paz da ONU.
No ato seguinte, uma insólita sinfonia —as sapatilhas estalavam contra o velho chão de madeira num vai e vem entre a sala e cozinha— geralmente acompanhada pelo ruído frenético das unhas da Tailândia, a vira-lata que perseguia a dona pelo espaçoso sobrado na Vila Madalena.
O clímax desse enredo começava logo após vestir o capacete sobre um de seus incontáveis caps (boné de ciclista) e trancar a porta de casa. Contrariando as regras narrativas, o êxtase era duradouro —entre 60 e 120 quilômetros— e regado a um perfeito coquetel de químicas da própria fisiologia: adrenalina, endorfina e serotonina; cada dose a depender dos compromissos que a esperavam para além daquela efêmera narrativa, a quimioterapia.
Era assim que Erika, por cerca de três anos, se esquivava dos prognósticos de sobrevida para seu câncer de mama metastático. Como ela escreveu aqui: “Pedale com diabetes, com uma perna só, com depressão… mas pedale!”. Foi assim que o fez até os limites da dor, em sua última pedalada, 35 dias antes de sua morte. Eu tive a imensurável sorte de estar ali, dividindo com ela as mais lindas experiências do viver. Arrebatado, contemplei a sobrenatural capacidade de superação —Erika se manteve a mesma fiel e ativa comunicadora, dos mais nobres ideais, até perder a fala na véspera de sua partida. Como escreveu Gabriel Garcia Márquez, em “O Amor nos Tempos do Cólera”: “é a vida mais que a morte, a que não tem limites.”
Erika se foi, mas sua mensagem humanitária vive! Como parte desse ciclo perpétuo, assumo a autoria do blog. Mas que fique claro —esta não é uma estreia, é a continuação do Ciclocosmo de Erika Sallum, até onde minhas pedaladas aguentarem.
Citando a Erika, termino: “é sobre esse amor que nos impulsiona a cada rotação do pedivela que tratará este blog, e abordará a bicicleta em todos os seus desdobramentos —de treinamento e competições (Vive Le Tour!) a ativismo e mobilidade urbana, passando por equipamentos, nutrição e pessoas que estão mudando o planeta com suas bicicletas. Curtiu? Então escreva, mande sugestões de temas para serem abordados aqui, compartilhe os posts, conte do blog para os amigos. O Ciclocosmo é seu mais novo [bom e velho] clube de ciclismo virtual. Cola na roda e vem junto!”