Tour de Serra Leoa enche o mundo do ciclismo de graça e esperança

Há não muito tempo, Serra Leoa, na África Ocidental, era sinônimo de palavras sinistras como guerra civil, crianças-soldado, estupro em massa, tráfico de diamantes.

O país até “fez sucesso” em Hollywood, servindo de pano de fundo para o filme “Diamante de Sangue”, protagonizado por Leonardo DiCaprio e mostrando a guerra civil que durou 11 anos, matou centenas de milhares de pessoas e resultou em mais de 2 milhões de refugiados e deslocados internos (quando alguém precisa fugir de casa, mas não cruza as fronteiras de sua nação).

Passados os anos, Serra Leoa continua miserável, mas já tem um Tour de ciclismo inacreditavelmente sensacional para chamar de seu — e esse é um dos sinais de que o país vem aos poucos se recuperando emocionalmente dos traumas de uma das guerras mais sangrentas da África.

O Tour de Lunsar começou nesta semana, com competições femininas e de atletas juniores. Nesta sexta-feira (16 de abril) teve início a prova masculina, que segue elevando a auto-estima nacional e empolgando o mundo ciclístico até o dia 18.

A alegria de quem ama uma corrida de bike <3 (Foto: Matt Grayson)

Não se trata de um Tour profissional, com bikes caras e ciclistas famosos, muito menos cobertura internacional da mídia. Estamos falando de uma volta de ciclismo de estrada humilde, em que os competidores vestem roupas doadas e pilotam bicicletas que já viram dias melhores. E cujo público frequentemente mal tem o que comer.

Mas é aí que reside a imensa beleza desses eventos africanos, como o Tour du Faso (em Burkina Faso, sobre o qual já escrevi aqui), o Tour de Ruanda (leia mais aqui) e o Tour de Camarões.

Tratam-se de competições feitas graças ao colossal esforço nacional de quem adora bike e corridas, como o Lunsar Cycling Team (que já foi tema deste blog), protagonizadas por ciclistas locais que não possuem grana para comprar equipamentos, mas isso pouco importa: ao amor por pedalar supera qualquer dificuldade.

Muito suor e batalhas épicas na prova dos juniores (Foto: Matt Grayson)

O Tour de Lunsar, que é o maior evento de bike de Serra Leoa, acontece longe da capital, Freetown. Lunsar tem cerca de 36.000 habitantes e vive da mineração.

Se você procurar “Lunsar” no Google Images, vai ter uma ideia do quão significativo é fazer com que toda uma cidade vibre ao som de bikes, em um ambiente que já sofreu de surtos de ebola a exércitos de crianças carregando armas e matando gente.

Com 7,8 milhões de habitantes, Serra Leoa contabilizou até agora apenas 4.000 casos de covid-19 e 79 mortes em decorrência da doença. Os baixos números se devem em grande parte ao isolamento do país, cuja fama ainda está ligada à violência e ao caos social.

Observe a largada e reflita se esse não é o Tour mais bacana do momento (Foto: Matt Grayson)

Sem reconhecimento oficial da União Ciclística Internacional (a UCI, órgão que coordena ciclismo mundial), devido a uma série de confusõespolíticas internas, Serra Leoa mal tem federação nacional para representar seus atletas. Como resultado, a UCI ignora um dos Tours mais divinos do continente africano — já tão mal contemplado por eventos e empresas de bike.

Mas o Tour de Lunsar vem atraindo simpatizantes mundo afora, como a Le Col, marca sofisticada de roupas de ciclismo, baseada em Londres. Para apoiar a competição, a Le Col tem feito lindos caps (bonés para pedalar) e jerseys (camisas de ciclistas) celebrando a prova, com renda revertida para os organizadores em Serra Leoa.

Além disso, a renomada marca de suplementos esportivos SIS (Science in Sport) é a grande patrocinadora.

Foco, garra e amor pela bike no Tour de Serra Leoa (Foto: Matt Grayson)

Obviamente que o Tour de Lunsar não vai ser exibido em uma ESPN da vida. Mas você consegue acompanhá-lo via Instagram do Lunsar Cycling Team, que vai te presentear com vídeos e stories fascinantes (não olhe apenas para os atletas, para não perder vendedores de bananas com bacias na cabeça passando do lado dos corredores com olhares curiosos).

Ver esse Tour, mesmo que só pelo celular, vai te colocar um sorriso no rosto, acendendo uma bela ponta de esperança no seu coração. Sim, o ciclismo e o amor pela bike ainda vivem, quase sempre nos cantos mais improváveis do mundo. Lá bicicletas milionárias e roupas de grife não existem, porém sobra paixão, que é o que realmente importa.