Dez anos de atropelamento de ciclistas no RS é relembrado com ato mundial
Foi uma cena surreal, que a gente não esquece nem depois de dez anos: durante uma manifestação de cicloativistas da Massa Crítica de Porto Alegre, o bancário Ricardo Neis atropelou intencionalmente 17 participantes.
Ele estava em um Golf preto e, após ficar irritado por não conseguir passar pelo protesto, decidiu que o melhor a fazer não era, por exemplo, virar em uma outra rua ou esperar uns minutos — mas, sim, dar ré, pegar “impulso” e jogar seu automóvel contra o grupo de ciclistas.
Em 2016, o motorista enfim foi condenado por 11 tentativas de homicídio e cinco acusações por lesão corporal. Porém só foi preso mesmo em maio de 2020.
O atropelamento não gerou apenas choque e revolta no país e no resto do planeta. Por causa dele, cicloativistas de diversas nações decidiram se unir para criar o Fórum Mundial da Bicicleta, um movimento horizontal com o objetivo de debater a questão da bike nas cidades e encontrar caminhos para melhorar a mobilidade e fazer com que os centros urbanos planejem com mais consciência seu espaço para pedestres e ciclistas.
No dia 25 de fevereiro (nesta quinta-feira), completa-se uma década do trágico ataque de Ricardo Neis contra essa comunidade de bikers que estava reunida exatamente para se fazer vista e ouvida pelas autoridades e cidadãos — isso em uma época bem menos bike friendly do que hoje.
Para celebrar a data — e relembrar a violência que ainda existe contra quem pedala, o Fórum Mundial da Bicicleta está conclamando ciclistas a participarem de um ato coletivo contra a violência no trânsito.
Em tempos de pandemia, o protesto do dia 25 pode acontecer de diversas maneiras, mesmo que seja postar uma foto em sua rede social pedindo mais responsabilidade de motoristas e governo, ao lado da hashtag #movendomassas (se puder colocar as versões em inglês e espanhol, ajuda: #movingmasses e #moviendomasas).
Vale também reunir amigos (todos de máscara, evidentemente) e pedalar em sua cidade, em um ato pacífico de ocupação do espaço público pelo meio de locomoção mais limpo e incrível que existe: a bike.
A cicloativista colombiana Ximena Maria Rodriguez Figueroa faz parte do Fórum Mundial e também é empreendedora no mercado cada vez mais pulsante que envolve a bicicleta, como dona da marca Chic*Lista, que produz lindas mochilas e bike bags em seu país.
Ela conversou com o Ciclocosmo sobre o Fórum, os dez anos do atropelamento e sobre a importância de se celebrar essa data para que ninguém esqueça daqueles que arriscaram e arriscam a vida para fazer das cidades lugares mais amigos da bike e das pessoas em geral:
CICLOCOSMO: Qual o papel do Fórum Mundial da Bicicleta hoje? E como você avalia estes dez anos de movimento?
XIMENA FIGUEROA: Desde sua criação, o Fórum teve um papel muito importante na construção da ideia de mobilidade sustentável através de espaços onde se possa discutir mobilidade ciclística, segurança, infraestrutura cicloviária etc. Hoje temos reconhecimento mundial, como um evento que reúne cicloativistas e expoentes da mobilidade e da luta pela cidadania.
Em 2021, estamos organizando o 10º Fórum Mundial da Bicicleta, entre 8 e 12 de setembro, em Rosário, na Argentina. É muito gratificante saber que, a cada edição, atraímos mais pessoas querendo se vincular ao Fórum, vindas de diferentes áreas e todas interessadas em gerar impactos, mudanças e evoluções no universo ciclístico em diversas cidades do planeta.
Nestes últimos dez anos, o espaço para a bicicleta foi muito discutido no mundo, e a figura do ciclista vem ganhando destaque. Por que você acredita que isso aconteceu?
Sem dúvida, o espaço aberto pelo Fórum Mundial da Bicicleta tem sido de grande importância para dar voz ao ciclista e exigir melhores condições e infraestrutura para se pedalar nas cidades.
Somado a isso, o mundo em geral vem passando por uma transformação e conscientização em relação à sustentabilidade, ao meio ambiente. O comportamento das pessoas já não é mais o mesmo de dez anos atrás, e uma boa parte da humanidade agora está mais consciente sobre o mundo em que vive e sobre as pequenas e grandes mudanças que podem ser conseguidas em se assumir certos hábitos que beneficiam o indivíduo e o coletivo — por exemplo, priorizar a bicicleta como meio de transporte como forma de reduzir a emissão de poluentes e também de melhorar a saúde dos cidadãos.
Ainda falta muito para que as cidades respeitem o ciclista e criem condições reais de segurança para que mais pessoas usem a bicicleta. Como essa situação pode melhorar?
É lamentável ver como ainda existe rancor e até mesmo ódio pelos ciclistas nas cidades. Não tenho uma resposta certa para explicar esse comportamento, mas acredito que tenha a ver com pensamentos egoístas instaurados pelas sociedades de consumo.
Para melhorar essa situação e fazer com que as cidades respeitem o ciclista e ofereçam condições reais de segurança para se pedalar, precisamos seguir firmes com movimentos como o Fórum. Precisamos manter um trabalho em conjunto com setores públicos, privados, com ativistas e cidadãos. Seguir convocando as pessoas e o mundo a melhorar a infraestrutura para o ciclista e educar a população a ter mais empatia é a chave para conseguir que mais gente use a bike e se sinta segura pedalando.
Você acha que um dos legados da pandemia será transformar as cidades e torná-las mais amigas da bicicleta?
Sem dúvida a pandemia tem obrigado, de certa forma, a que mais pessoas usem a bici como meio de transporte, afinal oferece menos risco de contágio que, por exemplo, o transporte público.
Quando se aumenta a demanda, é preciso ampliar a infraestrutura ciclística. E, de certa maneira, a pandemia vem ajudando a acelerar esse processo de construção de uma mobilidade sustentável, com a criação de mais quilômetros de ciclovias e outros espaços exclusivos para a bicicleta.
Espero que esse impulso continue, não apenas com mais infraestrutura dentro das cidades, mas também conectando cidades e populações próximas.