Cultura da bike underground perde uma de suas maiores lendas nos EUA
Se a efervescência da cultura da bike se expande hoje em diversos lugares do mundo — como em São Paulo –, saiba que muito disso se deve a guerreiros do underground ciclístico que, anos e anos atrás, já davam o sangue para ocupar seu espaço em cidades violentas para quem pedala.
É gente que se juntava em manifestações como a Massa Crítica, tirava a roupa nas Pedaladas Peladas e que, mesmo sem apoio de governo ou marcas do setor, transformava o planeta em um lugar melhor, por meio da bicicleta.
Por isso o blog de hoje é dedicado a David Confer, um negro norte-americano de 52 anos que se tornou sinônimo da cultura da bike em Washington DC. Mecânico, dono de bike shop, organizador de crit races do submundo das duas rodas de sua cidade, David morreu hoje, após sofrer meses de cirrose e alguns anos depois de se recuperar de um câncer.
Esse “fixeiro” (como são chamados os ciclistas que curtem bike fixa, de uma só marcha) fez história ao participar de todos os projetos mais legais de bike de Washington e ao estar à frente de iniciativas sensacionais, como o Tour de Bike Lane DC.
Nesse Tour fantástico, David e uma galera se juntavam algumas vezes por mês ao redor de ciclovias do centro da cidade e, tal qual em eventos famosos como o Tour de France, torciam, vibravam, gritavam, davam flores e celebravam qualquer pessoa que passasse por ali de bicicleta. Sinos, assobios, música e cerveja compunham a balada, que foi criada apenas para festejar quem pedalava em Washington.
David também ajudou a sofisticar o conceito de bicicletaria. Não, meu caro, uma boa bike shop não tem a ver com bikes milionárias na vitrine ou ferramentas brilhando em bancadas de aço escovado.
Uma loja de bicicleta excelente é aquela em que nos sentimos em casa, paramos para bater papo com nosso amigo — que por acaso é também o mecânico do lugar –, ficamos horas discutindo sobre o melhor guidão e de onde vamos embora com a certeza de que voltaremos em breve. E isso a Fathom Custom Bikes de David sabia fazer de forma exemplar (como, em São Paulo, também fazem, por exemplo, o Las Magrelas, a Ciclo Urbano e a oficina do mito Tom Cox).
Por sua loja modesta, passava a comunidade da bike de Washington, e cada bike criada por ele era largamente discutida com o futuro dono, em divertidos papos. Sempre sem grana, David ainda dava ótimos descontos aos fregueses, afinal, dinheiro não é o objetivo final de quem ama bicicleta de verdade.
Em 2017, David enfrentou um linfoma não-Hodgkin e, sem condições financeiras para bancar o tratamento em um país sem SUS, juntou grana com uma vaquinha e a ajuda de amigos. Dois anos depois, em março de 2019, ele acordou passando muito mal e logo foi diagnosticado com sérios problemas no fígado.
Alguns meses atrás, os médicos deram pouco tempo de vida a David, e outra vaquinha foi organizada pelos amigos, para que ele passasse os últimos dias com conforto em sua casa, após um ano difícil no qual ele se viu sem fontes de renda.
A comunidade ciclística de Washington se uniu, acolheu uma de suas maiores lendas e até organizou uma pedalada em sua homenagem, mesmo sem a participação de David, que ficou muito debilitado pela doença e já não conseguia fazer o que mais amava.
David morreu ao lado de sua companheira, cercado (mesmo que de longe, por causa da pandemia) por uma extensa rede de amigos eternamente gratos por toda a dedicação que ele mostrou à bicicleta.
Vá em paz, David! Que você pedale muito onde quer que esteja!