Pedale com diabetes, com uma só perna, com depressão… mas pedale!

Como uma jornalista e ciclista que fez mestrado em direitos humanos e trava diariamente uma chatíssima luta contra o câncer, eu sempre me emociono com iniciativas que mostram como a bike pode nos fazer superar limites e encarar qualquer obstáculo — mesmo, de verdade, sem pieguices ou drama.

Recentemente, um amigo me enviou a história de Annalisa van den Bergh e Erik Douds, dois ciclistas norte-americanos na casa dos quase 30 anos que decidiram pedalar boa parte do território de seu país.

Detalhe: ambos têm diabetes tipo 1, caracterizada pelo excesso de glicose no sangue e uma disfunção do pâncreas em produzir insulina. Com frequência, eles precisam medir a taxa de açúcar no sangue e aplicar insulina, mesmo quando estão subindo uma montanha de bike.

Erik repondo insulina durante uma parada de sua cicloviagem (Foto: Credit Annalisa van den Bergh)

A doença não impediu, em nada, que os dois amigos pegassem suas bikes de cicloviagem e partissem pelos rincões dos Estados Unidos. Pelo caminho, foram documentando muitas histórias e pessoas, em geral envolvendo cenas em que a bike ajuda a abrir portas, amolecer corações e despertar nos outros a vontade de ajudar e ser gentil com quem pedala.

A dupla se conheceu em um encontro de pessoas portadoras de diabetes tipo 1, em Nova York. De lá para cá, pedalaram juntos mais de 8.000 km por 49 dos estados de seu país e exploraram joias como a Índia e a TransAmerican Trail, uma rota mapeada nos anos 1970s que atualmente conta com cerca de 6.800 km atravessando os Estados Unidos por estradinhas menores.

Durante suas trips, foram registrando o que encontravam, em fotos e vídeos. Esse material se tornou o projeto Miles of Portraits, que consiste em uma revista e uma série de filmes sobre a galera que eles conhecem ao longo das expedições.

Annalisa quebrando tabus na capa da revista Adventure Cyclist de 2019

Pedalar ou encarar aventuras quando se tem sérios problemas físicos ou psicológicos não é apenas libertador. É, especialmente, inspirador. Ajuda a quebrar paradigmas e destruir preconceitos. Motiva quem está em situação tão delicada quanto a entender que, sim, dá para desviar dos perrengues e curtir a vida.

Por isso, Annalisa e Erik decidiram criar um novo projeto: um encontro virtual (devido à pandemia), batizado de “Cycling With” (Pedale Com), de pessoas com diferentes questões limitantes, como uma só perna (no caso, Leo Rodgers, sobre quem já escrevi aqui), com transtorno de estresse pós-traumático, com duas pernas mecânicas de carbono, com depressão, com surdez…

Pouco importa: o mais lindo é subir na bike e dizer uma baita “sai fora!” à condição que a vida te impôs.

No curto vídeo abaixo, veja alguns dos participantes:

O summit (encontro) acontece de 18 a 20 de setembro. Você pode se inscrever gratuitamente, ou fazer alguma contribuição para ajudar nos custos dos projetos. Mais informações aqui: https://milesofportraits.com/cycling-with

A seguir, um bate-papo rápido com Annalisa, de 28 anos, que é escritora e contadora de histórias. Na entrevista, ela explica um pouco mais sobre a ideia do encontro e sobre o poder da bike em transformar vidas e desviar trajetórias para melhor.

Como surgiu a ideia do encontro virtual?
Acho que a indústria da bike tem um problema gritante que se reflete do marketing às bicicletarias. Se você folheia as páginas de uma típica revista de ciclismo, por exemplo, parece que se trata de um esporte exclusivamente para pessoas magras, musculosas, brancas e saudáveis. E é aquela máxima, bem verdadeira: “Você não pode ser o que não pode ver”. Como uma mulher com diabetes tipo 1, eu sempre recebo olhares estranhos e perguntas questionando minha sanidade por querer pedalar pelo mundo. E tenho visto o impacto positivo que minha história de vida tem quando compartilhada com outras pessoas. Um bom exemplo é a capa da revista Adventure Cycling [ver imagem acima], na qual estou injetando insulina em meu braço. Essa foto deu a muita gente esperança de que essa doença não vai tirar completamente a espontaneidade delas.

Ao longo de minhas cicloviagens, tenho encontrado pessoas que não somente pedalam enfrentando uma série de problemas, como se transformaram e se libertaram ao subir em uma bicicleta. Estamos aqui, somos apenas sub-representados.

A ideia do summit partiu de tudo isso, tornando-se um encontro virtual, por causa da pandemia, em que queremos mostrar essas histórias.

Annalisa e Erik, com tudo o que carregam em suas viagens de bike (Foto: Cortesia Erik Douds)

Como vocês selecionaram os convidados do summit virtual?
São 15 convidados, que vão de um competidor de uma perna só até uma dupla de ciclistas surdos, passando por uma mulher cuja cicloviagem pelos Estados Unidos com seu cachorro e violino salvaram sua vida. Essa lista de pessoas são fruto de nossas conexões ciclísticas construídas durante milhares de quilômetros pedalados. Todas elas vêm quebrando barreiras e inspirando os outros.

Por que você acha que uma simples bicicleta tem o poder de mudar tanto a vida de uma pessoa?
Alguns anos depois da morte da minha mãe, eu pedalei cruzando os Estados Unidos. Pedalar é minha definição de felicidade, e aquela cicloviagem foi a melhor decisão que pude ter para enfrentar o luto. Pedalar de um oceano a outro me mostrou que eu tenho o poder de controlar minha própria vida, a partir das minhas pernas. Foi uma experiência catártica, que me deu tempo para refletir e perceber minha mãe no mundo a meu redor. E que também me apresentou aos meus melhores amigos. É pura liberdade.