Tour de France começa sábado, mesmo sob a ameaça da pandemia

Uma das grandes expectativas no ciclismo profissional assim que o coronavírus começou a destruir calendários e apavorar a humanidade foi em relação ao Tour de France. A mais importante competição de bike do planeta seria cancelada? Se até as Olimpíadas foram adiadas, teria a querida Volta da França o mesmo fim?

A prova inaugurada em 1903 e dona da maior audiência global de um evento esportivo só não havia acontecido durante os períodos das guerras mundiais, nos anos de 1915-1918 e 1940-1946.

Mas nem o corona conseguiu a proeza das guerras, apesar de a data inicial de 27 de junho ter sido prorrogada. O 107º Tour de France coloca na estrada o pelotão mais extraordinário do mundo a partir deste sábado (29 de agosto), percorrendo ‎um total de 3.470 km, em 21 etapas, até o dia 20 de setembro.

O Tour de France feminino, batizado de La Course, também será realizado, ainda nos moldes da absurda desigualdade de gênero que o acompanha há sete edições: em uma só etapa, de 96 km, neste ano em Nice, no mesmo dia da partida do pelotão masculino. Já passou o tempo de a UCI, o órgão que coordena o ciclismo mundial, se coçar para mudar essa realidade. Atletas da magnitude da holandesa Annemiek van Vleuten — provavelmente uma das melhores ciclistas de sua geração, entre homens e mulheres — merece mostrar seu talento em diversas etapas, com trechos de montanha, como na versão masculina.

A beleza do Tour do ano passado, em etapa de Pont du Gard até Gap (200 km) (Foto: Alex Broadway/A.S.O.)

Para falar um pouco do Tour de France, convidei o jornalista e mestre no assunto Leandro Bittar, 39. Há 15 anos escrevendo e comentando sobre bicicletas para inúmeros meios impressos e na televisão, ele é daqueles capaz de discorrer sobre La Grande Boucle horas sem fim, contando causos e revelando os feitos mais extraordinários da prova xodó dos amantes da bike.

Atualmente Bittar é um dos cabeças por trás do projeto Gregario Cycling, com podcasts e programa de rádio sobre esporte, saúde, cultura da bike e muitos outros temas ligados à bicicleta. Durante o Tour, haverá cobertura diária. Fique ligado porque, com Bittar, os comentários sempre são interessantes. O Instagram deles é @gregario_cycling.

Etape 15 do Tour 2019, de Limoux a Foix Prat d’Albis (185 Km) (Foto: Pauline Ball/ A.S.O.)

Diferentemente do Giro d’Italia e de outras competições, os organizadores do Tour de France não cogitaram muito a ideia de a prova ser cancelada, mesmo diante do futuro incerto por causa da pandemia. Por que isso aconteceu? É muita grana envolvida para cancelar um evento desses?
LEANDRO BITTAR A grana tem um papel imperativo nisso. Mas não diria que é apenas o dinheiro, mas a vida de muitas pessoas e equipes inteiras direta e indiretamente envolvidas. Claro que a organização quer manter sua fonte de receita, mas o cancelamento do Tour seria ainda mais danoso para toda a órbita da prova. É quase unânime que a realização do Tour compensaria a não realização de todos os outros eventos do calendário. Todos estão tentando manter esse castelo de cartas empilhados ao menos até o Tour, pela dimensão que ele atinge, ainda mais porque existe o risco de que uma nova onda de contaminação impeça a realização do restante do calendário. O Mundial [previsto para acontece de 20 a 27 de setembro] não será mais realizado na Suíça e a UCI tenta viabilizar em outro local. Muitas provas estão se desdobrando para lidar com as restrições locais – uma etapa passa por muitas cidades, e cada uma delas lida de forma diferente com o tema – e também com as restrições alfandegárias entre países em momentos diferentes de quarentena. Conseguir manter o Tour em pé é a maior missão do ciclismo nos tempos de covid-19. Disso depende o futuro do esporte.

A pandemia muda alguma coisa no Tour de France 2020?
Sim. Há uma série de restrições e protocolos para a realização do evento. Todo o contato será evitado. Poucas pessoas nos pódios, pouco contato com a imprensa e o mínimo de público nas largadas e chegadas — algo que normalmente era superlotado. Os ciclistas só tirarão as máscaras para correr.

É importante lembrar que a França sofreu muito com a pandemia, mas conseguiu um certo controle neste momento e pode se dar ao luxo do afrouxamento. Alguns eventos já foram realizados a partir de julho, e estão sendo monitorados os efeitos disso. Há casos positivos no pelotão, mas há também um esforço de todas as partes para minimizar os riscos. Os ciclistas estão preocupados. Alguns estudos dizem que a covid-19 pode deixar sequelas de 5-8% na capacidade respiratória. Um ciclista pode não morrer de covid, mas pode nunca mais performar em alto nível. E isso assusta. Por outro lado, para o esporte que se orgulha das reconstruções nacionais pós-guerras, acho que o simbolismo do evento também tem um valor nesta virada pós-pandemia.

O Tour é a prova de ciclismo mais querida da Europa, e atrai milhares de pessoas para as ruas. Não vai ser diferente neste ano. Na sua opinião, é arriscado atrair tanta gente para ver o Tour passar?
Estão fazendo todo o esforço para que essa ocupação seja evitada. É impossível proibir as pessoas de ocuparem as ruas. Mas não teremos as vilas nas saídas e chegadas, por exemplo. Em alguns eventos ao longo do ano, a premiação nem foi em lugares abertos. Nas primeiras provas, na Espanha, mesmo nas montanhas, o público usou máscaras e evitou aglomerações. Na Itália e na França, foi um pouco mais relaxado. Vamos ver como será. Eu creio que o risco não deve ser maior do que o atual.

O colombiano Egan Bernal, vencedor do Tour de France 2019 (Foto: Thomas Maheux/A.S.O.)

Mudando de assunto (chega de pandemia!), quem são os favoritos deste ano para o Tour? Os ciclistas não tiveram um ano fácil para treinar…
Adoro essa parte! A dificuldade de treinamento e, principalmente, a falta de ritmo de prova traz um grande suspense sobre o condicionamento dos ciclistas. Para nós isso é ótimo, pois torna as coisas menos previsíveis. A Ineos, equipe britânica que venceu sete das últimas oito edições, mantém seu favoritismo. Aposta alta no atual campeão, o colombiano Egan Bernal [algumas semanas atrás, a equipe divulgou que os astros Chris Froome e Geraint Thomas, campeões do Tour em 2017 e 2018, respectivamente, não vão disputar a prova, deixando a liderança com Bernal]. Os holandeses da Jumbo-Visma conseguiram um salto evolutivo bem grande no ano passado e melhorou ainda mais para 2020. É apontada como a equipe mais coesa e motivada nessa briga. Há alguns nomes correndo por fora, como a equipe Bahrein-McLaren, a EF Education First e Arkea-Samsic, mas creio que brigam mais pelo pódio do que pelo título. Ineos x Jumbo-Visma é prato principal desta edição.

E quais as grandes equipes deste ano?
Até pelas incertezas do que pode acontecer nos próximos meses, estão todos os times indo com força máxima. Fora os que brigam pela classificação geral, algumas grandes equipes têm missões relevantes, como as etapas e classificações secundárias, incluindo a camisa verde, da classificação por pontos. Vale destacar a alemã Bora-Hansgrohe, do tricampeão mundial Peter Sagan, e a Deceuninck-QuickStep, do francês Julian Alaphilippe, que quase matou os franceses do coração ao liderar grande parte da prova no ano passado.