Equipe de ciclismo transforma vidas em Serra Leoa
Guerras civis costumam ser bem violentas, mas o conflito que assolou Serra Leoa por 11 anos revelou-se um dos mais sangrentos da história recente da África.
De 1991 a 2002, grupos rebeldes atacaram vilarejos, forçaram centenas de crianças a virar soldados, estupraram multidões de mulheres e roubaram um número incontável de diamantes das minas deste país da África Ocidental (os famosos “blood diamonds”), como relatou de forma sublime Ishmael Beah em seu livro autobiográfico Muito Longe de Casa.
Mesmo com um substancial crescimento econômico nos últimos anos, Serra Leoa continua a cicatrizar as feridas da violência — com a ajuda, veja só!, da bicicleta. <3
Criado em uma cidade de mineração no norte do país, o valente Lunsar Cycling Team é um exemplo sensacional de como a bike pode transformar e impactar a vida das pessoas de um jeito singular. A equipe de ciclismo reúne homens e mulheres em treinos diários e competições locais vibrantes, como o Tour de Lunsar.
A equipe foi fundada por Abdul Karim Kamara, conhecido pelo apelido Stylish (Estiloso), então dono de uma pequena loja de reparos de bicicletas. Único ciclista do pedaço, Stylish foi aos poucos conquistando corações e mentes, até que decidiu criar um time com o nome da cidade, Lunsar.
Sem tradição no ciclismo, Lunsar não tem lojas de bikes de estrada, muito menos onde se podem comprar camisas e bermudas para pedalar. Por isso, a equipe conta a ajuda de doações (quer ajudar? clique aqui).
O Lunsar Cycling Team abriu espaço para as mulheres, em um país ainda bastante marcado pelo preconceito. Garotos e garotas treinam diariamente, e agora também adquiriram o hábito de pedalar até a escola, mercado e outros lugares. O projeto consolidou, assim, um senso de comunidade ciclística, na qual os cidadãos se identificam uns com os outros e aprendem a se respeitar.
“Meu amor pelo ciclismo é a maior coisa que tenho comigo. E meu objetivo é ver a bike fazer parte da vida de cada vez mais pessoas em Serra Leoa”, diz Mr. Stylish. “Meu sonho é ver a bandeira do meu país no Tour de France, nas Olimpíadas e nos Campeonatos Mundiais.”
Apesar de não ser chancelado por órgãos internacionais, seu Tour de Lunsar já entrou para o calendário local, e parte dos ciclistas da equipe até já estreou em uma prova internacional: o Tour da Guinea <3 <3 <3.
Bati um papo com o simpaticíssimo Abdul Stylish Kamara, que falou das conquistas e dificuldades do Lunsar Cycling Team.
O que te levou a decidir que uma equipe de ciclismo poderia ser uma boa ideia para o povo da região de Lunsar?
Abdul Karim “Stylish” Kamara: Eu decidi lançar a equipe Lunsar Cycling Team para que o ciclismo passasse a ser visto como um esporte nacional e para incentivar e empoderar as gerações mais jovens de Serra Leoa. Até então, apenas Freetown, a capital, havia tido alguma experiência com o ciclismo, nos anos 1990.
Como foram os primeiros meses após a criação da equipe de ciclismo, especialmente no que diz respeito a apoio para bikes, roupas e equipamentos para os atletas?
Os primeiros meses e anos foram de grandes dificuldades e desafios para apresentar a equipe de ciclismo à comunidade de Lunsar. Eu era o único ciclista da região, e toda vez que eu colocava minhas roupas de pedalar as pessoas davam risadas, especialmente de minha bermuda de lycra, que deixa a bunda da gente praticamente aparecendo. Quando eu percebi que as pessoas riam de mim quando eu estava vestido assim, resolvi aumentar meus treinos para duas vezes por dia. Fazia questão de que o último treino do dia terminasse no Central Park de Lunsar, onde os jovens costumam se reunir. Eu chegava lá e começava a fazer umas manobras com minha bike — foi daí que surgiu meu apelido “Stylish” (Estiloso). Com essas brincadeiras, fui ganhando popularidade na cidade. E isso foi me dando motivação para inspirar os jovens a pedalar também.
E foi fácil achar quem quisesse se juntar a você?
Eu conheci seis garotos que tinham mountain bikes velhas, e eles passaram a me acompanhar nos treinos todos os dias. Aí comecei a pensar em como conseguir equipamentos, incluindo bikes, para todos, o que se mostrou um tremendo desafio. Contactei o presidente da federação nacional de ciclismo para tentar conseguir bikes para minha turma. O presidente ficou surpreso com a iniciativa, porque sou de uma região bem rural de Serra Leoa. Porém a federação também estava com dificuldades para conseguir equipamentos e não poderia me ajudar. Mesmo assim, virei um grande amigo dele. Continuei tentando apoio, organizando pequenas competições locais em Lunsar, para as quais convidava o presidente da federação e o capitão da equipe nacional. Eu acabei ganhando essa primeira competição, que batizei de Tour de Lunsar.
Tive a sorte de conhecer um norte-americano chamado David Pecham, fundador do Village Bicycle Project [uma organização criada para empoderar comunidades carentes por meio da bicicleta], e o convidei para a segunda edição do Tour. Quando David voltou para seu país, começou a enviar para gente bicicletas usadas, o que nos deu um enorme incentivo a continuar pedalando. Também conheci Tom Owen, britânico que escreve sobre bikes, que nos ajudou a conseguir nosso primeiro uniforme e a trazer a primeira bicicleta Bianchi de Serra Leoa. Dessa maneira, fomos nos tornando a maior equipe de ciclismo do país.
Como a bicicleta tem contribuído para melhorar a vida das novas gerações em um país que sofreu tantos anos com guerras e violência?
Somos um projeto de empoderamento. E, de quebra, contribuímos também para a educação: todos os nossos jovens ciclistas vão para a escola pedalando, e alguns usam a bike para comprar comida e outros itens para suas famílias. Isso sem falar nos benefícios físicos de se exercitar.
O Lunsar Cycling Team tem trabalhado também com mulheres. Por que você resolveu abrir espaço para talentos femininos da bike?
Para promover maior equilíbrio entre os gêneros. Ao inspirar as mulheres daqui a subir na bike, elas compreendem o quanto pedalar pode mudar vidas. Em Serra Leoa, as mulheres são marginalizadas, e há um estigma generalizado de que mulher não deve pedalar. Para acabar com isso, eu abri aulas especialmente para ensiná-las a pedalar. Por causa de nossa iniciativa, muitas garotas de Lunsar agora usam a bike para ir para a escola, o mercado e outros lugares.
Atualmente quais são os maiores desafios e obstáculos da equipe?
Em primeiro lugar, é sempre difícil conseguir equipamentos, bikes e roupas. Faltam pneus, câmaras, correntes, cassetes, sapatilhas… Outro problema é conseguir atendimento médico adequado quando nossos ciclistas mais fortes se acidentam. E também não conseguimos alimentar nossos ciclistas mais experientes, não temos grana para dar alimentação a eles.