É nossa obrigação apoiar a paralisação dos entregadores de apps
A pandemia escancarou ainda mais o abismo socioeconômico entre nós, brasileiros. Enquanto as classes média e alta usufruem o privilégio de fazer home office e se proteger do coronavírus, uma multidão de trabalhadores de aplicativos pedala em bikes precárias, em turnos que costumam passar de dez horas diárias, para te levar aquele hambúrguer gourmet da lanchonete coxi-hipster que você adora (com maionese de wasabi da casa).
(No início da pandemia, contei neste blog um pouco da rotina de uma ciclista entregadora; para ler, clique aqui).
Entre uma e outra entrega de sushi de salmão com cream cheese, esses bikers comem porcaria na rua, quase sempre empurrada goela abaixo com a ajuda de refrigerante barato. Muitos te entregam comida com fome, em um corre brutal para conseguir alguma renda no fim do mês.
Boa parte mora muito longe das áreas onde faz entregas, centenas não têm nem bicicleta para trabalhar e a maioria considera empresas como Rappi, iFood e Uber Eats exploradoras de sua mão de obra — mas continuam mesmo assim porque não há outra opção.
Cansados de passar tanto perrengue por tão pouca grana, os ciclistas e motociclistas de apps fazem nesta quarta (1 de julho) uma paralisação de seus serviços. Mobilizados via Whatsapp e outras redes sociais, eles conseguiram a adesão de colegas em várias cidades do Brasil e também na América Latina. E emplacaram um bela hashtag: #BrequeDosApps.
Há dois anos fazendo entregas em São Paulo, o ciclista alagoano Lucas de Oliveira, 23, dá a letra: “A maioria de nós vem da periferia, muitos são desempregados ou têm passagem pela polícia e acabam ficando à margem da sociedade por causa de preconceito. Aproveitando-se da condição miserável em que essas pessoas se encontram, as empresas de aplicativos exploram mesmo, incentivando cargas horárias absurdas para gente tentar arranjar uns trocados”, diz.
Se quiser ganhar pelo menos um salário mínimo, Lucas precisa ficar o dia inteiro longe de casa, exposto ao coronavírus, sem qualquer apoio dos apps. “Estamos nas ruas com fome, e temos que desembolsar nosso alimento, porque nem isso eles garantem. Ou seja, muitos dos dias em que saímos temos que PAGAR para trabalhar”, conta Lucas.
Ele mora em São Caetano do Sul e pedala cerca de 50 minutos até a região do centro de São Paulo para fazer entregas. Mas sua “real quebrada desde pivete”, explica, é o Capão Redondo, bairro fundamental em sua formação e visão política. A origem humilde não tirou dele o inconformismo com a situação. “É a gente que faz a cidade acontecer” — bela frase para você refletir na hora de pegar a sacola de comida das mãos de um entregador.
Hoje Lucas não depende só dos aplicativos. Durante os anos pedalando por aqui, conheceu outros ciclistas entregadores e, juntos, criaram o coletivo de entregas SinkroMess. “Fazemos entregas particulares de forma mais orgânica, sempre visando uma relação justa entre o cliente e o mensageiro. A cidade precisa do nosso serviço, então somos nós que devemos oferecer isso, não os aplicativos.”
Consciente de sua condição, Lucas pedala no sol, chuva, pandemia, rua esburacada, trânsito agressivo. Na quarta-feira, ele vai participar da paralisação para exigir um valor decente de taxa mínima de entrega, que não teve qualquer ajuste, mesmo diante do aumento da demanda por delivery com a pandemia. Segundo a Folha publicou recentemente, a colombiana Rappi, por exemplo, declarou aumento de 30% na América Latina.
“Precisamos também de auxílio médico para possíveis emergências e de alimentação garantida. Isso é o básico para a sobrevivência de qualquer ser humano”, afirma Lucas, que também é cozinheiro e sonha em ter um dia seu próprio negócio no ramo alimentício.
Previsto para ser lançado no final de julho, o filme “Pandelivery – Quantas vidas vale o frete grátis?” mostra a rotina e os perrengues de motoqueiros e ciclistas entregadores de aplicativos em São Paulo. O documentário tem direção de Guimel Salgado, da Soalma Production Co., e Antonio Matos.
No início, o filme era para ser uma ficção sobre o assunto, mas a pandemia transformou a ideia original.
“Quando o coronavírus chegou, decidimos abrir mão da ficção e ir a campo registrar a realidade, ela já era o suficiente”, explica Salgado. “O que pensa um entregador voltando pra casa? Ele bateu sua meta? Como deve ser levar algo de que nunca desfrutará para um lugar onde, provavelmente, nunca terá condições de morar? Essas questões sempre me assombraram, e mostrar essa realidade seria uma crítica a meu próprio uso desses apps.”
Deixo aqui dois teasers de “Pandelivery”, que terá o trailer oficial lançado amanhã para celebrar a paralisação, para que todos nós reflitamos sobre justiça social e até mesmo sustentabilidade — um ciclista entregador não polui o ar da cidade.
Antes de sair pedindo seu “lancho” favorito, priorize cooperativas de entregadores e pare de fazer parte de uma engrenagem de exploração dos mais vulneráveis. O mundo pós-pandemia vai precisar disso.