Ciclistas se unem para lutar contra o racismo e por justiça social
Durante os recentes protestos anti-racismo nos EUA, sete ciclistas que participavam dos eventos em Nova York se conectaram e decidiram criar um grupo para lutar por direitos humanos. A peculiaridade deles: enquanto uma boa parcela do movimento se manifestaria a pé, eles estariam de bike.
Em poucos dias, os novos amigos conseguiram mobilizar conhecidos e, por meio das redes sociais, começaram a divulgar datas de suas pedaladas em favor de justiça social. A primeira, no dia 20 de junho, surpreendeu os organizadores: impressionantes 10.000 pessoas e suas bikes invadiram Manhattam e os outros boroughs da cidade, gritando palavras de ordem como “De quem é a rua?! É nossa rua!” e entoando músicas produzidas pelas milhares de buzinas das bicicletas.
O Street Riders NYC tornou-se, assim, uma proeminente iniciativa que une cicloativismo, luta contra o racismo e demanda por justiça social diante de uma polícia agressiva e preconceituosa — especialmente com ciclistas negros.
(Segundo o site Streets Blog NYC, a polícia multou 440 pessoas, entre 2018 e 2019, por pedalarem na calçada, sendo que 86,4% dos multados eram negros e/ou hispânicos. O número já é esquisito por si só, mas fica ainda mais desproporcional quando se leva em conta que esse grupo representa apenas 49% dos ciclistas nova-iorquinos. No mesmo período, foram dadas 39 multas semelhantes a ciclistas brancos, que representam 40% desse público na cidade.)
O Street Riders NYC, que continua reunindo milhares de bikers em protestos que também servem para mostrar aos mais privilegiados os bairros menos favorecidos da cidade, tem se destacado na luta anti-racismo. Mas há diversas outras iniciativas, dentro e fora dos EUA, que vêm usando a bike como ferramenta importantíssima na defesa dos direitos humanos.
São grupos como o Friends on Bikes (@friends.on.bikes), que trabalha para tornar o universo da bike mais diverso e inclusivo para comunidades negras, indígenas e LGBT dos EUA, e o WTF Bikexplorers (@wtfbikexplorers), que apoia, celebra e conecta ciclistas mulheres, trans, não-binárias que usam a bicicleta para explorar e se aventurar pelo mundo.
Alguns já existiam antes da explosão do movimento Black Lives Matter após o assassinato de George Floyd, enquanto outros estão se formando agora, como o Ride For Black Lives — que está organizando nesta segunda (29/junho) uma “mass ride” (pedaladas que atraem massas de gente) para incentivar amor e união, em Los Angeles, na Califórnia.
Como já explicou os criadores do Street Riders NYC, a mobilização de ciclistas pode se dar, inclusive, para proteger manifestantes a pé em seus protestos, afinal a bicicleta é um objeto de uso permitido que pode servir de eficiente escudo entre um ativista e policiais enfurecidos de cacetetes nas mãos.
Os pedais anti-racismo também têm ajudado a mostrar a mais pessoas o que significa ter uma infraestrutura decente para se locomover pelas cidades. Ao levar milhares de ciclistas a bairros empobrecidos sem ciclovias ou qualquer tipo de incentivo ao uso da bicicleta, os organizadores apontam o racismo escancarado que sofrem comunidades negras e hispânicas que habitam regiões periféricas.
Além de tudo isso, os ciclo-protestos vêm colaborando para fortalecer a ideia de comunidade entre quem pedala em grandes centros urbanos. Os fundadores do Street NYC, por exemplo, costumam pedir em suas mass rides que as pessoas conversem com quem está pedalando a seu lado, para que — como aconteceu com eles próprios — haja mais interconexão entre aqueles que acreditam em ideias parecidas de justiça social e mobilidade.
Há ainda iniciativas internacionais, compostas por ciclistas de diversos países, como o interessantíssimo The Black Foxes (As Raposas Negras; @the_blackfoxes), cuja missão é “criar as próprias narrativas” e assim tornar o meio da bike mais acessível a pessoas negras.
O grupo é formado por diferentes vertentes de ávidos e experientes ciclistas, de backgrounds variados (como mountain bike, ciclismo de estrada, bike fixa etc.). A iniciativa partiu de Ayesha McGowan (@ayesuppose), que nos últimos anos se tornou um ícone como a grande pioneira ciclista profissional negra nos EUA, em um esporte absurdamente branco.
Com integrantes influentes e que sabem o poder das redes sociais, os Raposas Negras conseguem chamar a atenção para a causa e, dessa maneira, pressionar as marcas para aderirem a essa nova realidade.
Conversei com o norte-americano Marton “Marty” Merritt, 41, que vive na Espanha e passou a integrar o grupo desde sua criação, em março deste ano.
Como e por que o The Black Foxes foi criado?
MARTY MERRITT Em março de 2020, a Aysha e seu marido, o também ciclista William Loyd, contactaram ciclistas negros de diversos lugares. A ideia era formar um projeto para promover a presença e a experiência negra no ciclismo e no universo outdoor. Somos um grupo fisicamente separados, pois cada um mora em um lugar, mas nos reunimos por Zoom e outros meios regularmente.
Queremos ampliar a presença negra no ciclismo. Queremos tomar posse de nossas próprias narrativas, para promover esse esporte e estilo de vida, baseados em uma maravilhosa ferramenta não-poluente de deslocamento e também de manutenção da saúde física e mental.
Por que o universo da bike é tão branco?
Muitos negros andam de bike. Mas nos esportes que envolvem bicicleta é muito diferente, apesar de termos algumas figuras negras históricas. Não temos no World Tour de ciclismo de estrada um ciclista negro americano ou brasileiro. Há alguns negros africanos, porém bem poucos.
Queremos normalizar a negritude no mundo do ciclismo. Para chegar a um ponto em que não teremos mais de achar algo impressionante ter um ciclista negro no ranking profissional.
Ciclismo é muito caro. E isso já cria uma barreira enorme de acesso ao esporte.
Fora isso, o ciclismo tem outro aspecto, o de querer manter tradições. É um espaço cuja maioria é composta por homens brancos e ricos. E ainda hoje há muita gente que não quer o ciclismo mude, porque pensam que diversidade e inclusão levarão a uma perda do espaço. Essa é a maior barreira que temos de superar.
De que maneira é possível tornar o ciclismo mais inclusivo?
Primeiramente, sou um norte-americano morando na Europa. Minha resposta seria bem diferente se eu morasse no Brasil, onde a população negra encara um nível de racismo e discriminação enormes. Então minha resposta tem esse viés, apesar de os negros norte-americanos também viverem essa realidade.
É possível, sim, mudar o universo do ciclismo. As marcas precisam contratar mais gente negra, mais mulheres etc. Para que façam parte de sua equipe, para serem embaixadores, para se sentarem nas mesas de decisão. É preciso ter mais negros decidindo dentro das marcas.
As empresas precisam saber que, com inclusão e diversidade, elas terão um mercado maior onde vender seus produtos. É uma situação na qual todos ganham e se beneficiam.
Outro ponto importante é que há uma falta de infraestrutura segura e eficiente de bicicleta nas comunidades negras e pobres no mundo inteiro. É preciso ter infra para a pessoa ir ao trabalho de bike, para treinar. Isso já abriria enormemente a possibilidade de mais gente aderir à bicicleta.
(Para você conhecer mais sobre Marty e as causas que ele defende, deixo aqui um vídeo recente feito por Luis Porto, ciclista brasileiro radicado na Espanha que está inaugurando um canal sobre ciclismo — e, com toda razão, resolveu estrear se projeto falando sobre racismo e outros temas relevantes)