Brasil, pare de burrice e valorize a bike neste momento, por favor!
A pandemia e o distanciamento social estão jogando em nossa cara o quanto a bicicleta pode — e deve! — se tornar uma ferramenta essencial nas políticas públicas sanitárias, de mobilidade e, mais tarde, de desconfinamento e volta à ainda pouco compreendida “normalidade” pós-coronavírus.
Não surpreende que os países mais desenvolvidos já tenham percebido o poder da bike neste atual momento conturbado da história (poder, aqui, referido à bicicleta como meio de transporte, e não de treinos tresloucados de quem acha que está acima de distanciamentos e pandemias).
Como já escrevi aqui neste blog, nações como a França estão criando projetos e leis para incentivar o uso desse meio de transporte limpo, barato, prático e que não gera aglomerações. Até dinheiro para que as pessoas possam fazer manutenção em suas bikes antigas o governo francês decidiu dar (leia mais aqui).
Uma reportagem de hoje (23/05) do jornal inglês The Guardian conta como as oficinas mecânicas de bike têm visto o público aumentar nos últimos meses. São pessoas que possuem bicicletas velhas largadas na garagem e que, com a pandemia, decidiram voltar a pedalar para se locomover por lá. A venda de equipamentos para levar crianças na garupa também cresceu.
Segundo o jornal, uma combinação de ruas mais vazias, dias mais quentes e a percepção de que pedalar será a melhor opção para ir e voltar do trabalho depois do caos levou a um salto de 50% nas vendas de bicicletas em abril, no Reino Unido. Em Londres, a prefeitura resolveu proibir carros no centro, exatamente para estimular mais pedestres e ciclistas a não utilizarem o transporte público.
Grant Shapps, secretário nacional dos transportes britânico, pediu às autoridades locais que façam “mudanças significativas na disposição das ruas para abrir mais espaço para ciclistas e pedestres”. Além do distanciamento necessário ao combate ao coronavírus, diversos governos europeus querem manter as taxas mais baixas de emissão de poluentes, resultado de menos carros nas ruas e um desaquecimento na produção industrial com a crise.
O boom da bike também tem sido forte nos Estados Unidos. O New York Times publicou dias atrás uma reportagem intitulada “Pensando em comprar uma bike? Prepare-se para uma longa fila”. O artigo detalha a alavancada nas vendas de bikes e acessórios em muitas cidades do país. Há lojas que viram as vendas explodiram em mais de 600%, e outras que ficaram com as prateleiras vazias sem produtos suficientes para os fregueses.
Mas e a gente aqui, onde o contágio e as mortes por covid só fazem aumentar, não teve lockdown oficial e o presidente está mais preocupado em falar palavrão em reunião ministerial do que pensar políticas públicas que ajudem na luta contra a pandemia?
Calma! Não nos desesperemos, ainda que a situação brasileira seja bizarramente surreal. Ainda é possível não perder o bonde da tendência mundial de dar o devido valor à bicicleta como peça-chave nas questões de mobilidade urbana na era do coronavírus.
“A frase é meio clichê, porém pura verdade: a bicicleta é uma solução simples para nossos problemas complexos”, diz Marcelo Catalan, líder da área de bikes elétricas para América Latina da Specialized, marca norte-americana muito apreciada pelos paulistanos.
“Mas o mercado brasileiro é complexo, especialmente pela carga de impostos. O microempresário no Brasil tem dificuldade de desenvolver seu negócio, o que atrapalha toda a cadeia”, complementa ele, para explicar por que não estamos vendo ainda um crescimento tão expressivo nas vendas no Brasil.
Cyro Gazola, presidente do Grupo Dorel Sports no Brasil (que comercializa as marcas Caloi, Cannondale, Schwinn, GT e Fabric), afirma que as vendas via e-commerce até que estão melhorando, “principalmente na faixa de produtos de R$ 1.000 a R$ 3.000, com foco em bicicletas urbanas e mountain bikes”. “Entretanto esse total ainda não compensa o grande número de lojas fechadas por todo o país”, diz Gazola.
Ou seja, o mercado de bike no Brasil não está festejando as vendas como no Hemisfério Norte. Nem os grupos de cicloativistas e especialistas em mobilidade estão realizados como os da Europa, pois por aqui ainda não vislumbramos nenhum plano de ação satisfatório que envolva o uso da bicicleta como forma de proteger o cidadão e diminuir aglomerações.
Maaaaas a esperança é a última que morre…
Por isso, a Aliança Bike, associação do setor criada para fortalecer a economia da bicicleta e seu uso pela população, resolveu lançar um documento com dez propostas para estimular a utilização e o mercado de bicicletas no país. Não se tratam de ideias novas, mas que valem a pena serem relembradas e reforçadas diante do poder público. “Em alguns casos, são medidas que já estão na mesa de gestores para serem decididas, esperando apenas uma canetada, como é o caso da que contempla redução da carga tributária”, diz Daniel Guth, diretor-executivo da Aliança Bike e pesquisador em políticas de mobilidade urbana.
A seguir, as dez propostas e um bate-papo com Guth para saber o que devemos fazer para não ficar à margem de um dos poucos lados positivos dessa pandemia dos infernos: a valorização da bicicleta.
Houve um crescimento absurdo na venda e uso da bike em várias cidades no mundo. Isso pode vir a acontecer por aqui?
DANIEL GUTH Por enquanto não temos, ainda, nenhum sinal de que o mesmo fenômeno vá ocorrer no Brasil. Uma pesquisa recente que a Aliança Bike fez com mais de 160 lojistas de todo o país mostrou uma queda no faturamento das lojas de bicicletas de, ao menos, 50%. Para 1/3 das lojas, a queda foi superior a 75%. Esses dados compreendem o período que vai de 15 de março (início da quarentena) até 15 de abril.
No entanto nosso monitoramento do setor já mostra uma boa recuperação do mercado de bicicletas a partir do final de abril e começo de maio. Ainda não “normalizamos”, mas estamos perto disso. Daí para termos um salto no uso e nas vendas de bicicletas precisaríamos de uma série de políticas — que condensamos em nosso documento com as dez propostas.
O que estamos observando na Europa não é apenas o aproveitamento de uma janela de oportunidades, mas a consolidação de políticas que já estavam em curso havia décadas e que só foram aceleradas e aprofundadas. Falta, ao Brasil, algumas “lições de casa” anteriores.
Que medidas poderiam ser tomadas a curtíssimo prazo para incentivar o uso da bike como meio de locomoção nesta fase de pandemia?
Temos que pensar em duas frentes de atuação: uma para o período de isolamento máximo e outra para o processo de saída do isolamento.
Para o período de isolamento máximo, as medidas são emergenciais e visam garantir o deslocamento de trabalhadores de serviços e atividades essenciais — como ciclofaixas temporárias (só com pintura e balizadores), abertura de ruas e avenidas inteiras para modos ativos de deslocamento, redução dos limites de velocidade em avenidas e aumento da fiscalização, bicicletários temporários e amplos em destinos mais acessados, entre outras.
Para o processo de saída do isolamento, há que se pensar no futuro das cidades pós-pandemia, no “novo normal”. Medidas perenes que estimulem diretamente o uso de bicicletas são essenciais, como a redução drástica da carga tributária sobre a bicicleta, linhas de financiamento do governo federal para municípios expandirem malha cicloviária, ampliação de ciclovias e ciclofaixas pelas prefeituras, alteração da lei do vale-transporte para estender esse direito aos trabalhadores ciclistas, campanhas públicas de incentivo ao uso de bicicletas.
Em algumas cidades, como São Paulo, tivemos um aumento no número de acidentes de trânsito no início da pandemia. Como proteger o ciclista e, ao mesmo tempo, incentivar a bike nas cidades?
O aumento de 40% de óbitos no trânsito da cidade de São Paulo em março (comparação com o mesmo mês de 2019) foi puxado, especialmente pelas mortes de motociclistas (um aumento de 85%).
Por incrível que pareça, o congestionamento é um aliado da segurança viária, pois ruas e avenidas livres e com pouca fiscalização são um convite para condução em alta velocidade. O fato de termos menos congestionamento por conta do isolamento demanda uma atenção em dobro da CET para ampliar medidas de segurança viária para todos no trânsito. Entre as medidas, podemos pensar em decretar novos limites de velocidade máxima em avenidas (eu defendo limite máximo de 40 km/h em todas as vias arteriais, 30 km/h nas coletoras e 20 km/h nas vias locais), aumentar a fiscalização de motoristas, punir exemplarmente os infratores e também implementar estruturas físicas (temporárias e permanentes) como lombofaixas, redutores de velocidade, lombadas eletrônicas etc.
A CET tem uma área competente de segurança viária, ela só precisa ser valorizada e o tema ser pautado com interesse político pelo prefeito Bruno Covas.