Enquanto França decide que pagará para pessoas pedalarem, aqui é só tristeza
A notícia chegou causando inveja braba até nos ciclistas paulistanos mais “zen”: na França, entre as medidas de desconfinamento a serem colocadas em prática assim que os números de mortos e infectados baixarem, o governo já separou um pacote de 20 milhões de euros para incentivar o uso da bicicleta no país.
Parte desse valor será destinado a pagar 50 euros para que cada francês ou francesa que tenha uma bike parada na garagem possa dar um trato na magrela para voltar a usá-la nas ruas. Isso mesmo: cientes de que dois terços das 30 milhões de bicicletas que os habitantes possuem ficam sem uso empoeiradas em um canto da casa, as autoridades de lá resolveram PAGAR para que o dono da bici faça nela uma manutenção.
O dinheiro não será distribuído diretamente aos usuários. A pessoa precisará levar a bike até uma bicicletaria, e aí o dono da loja pedirá reembolso ao Estado. Pode não ser um valor que cubra toda a manutenção, mas é uma belíssima ajuda, em especial à população de renda mais baixa da França, como imigrantes e refugiados.
O restante dos 20 milhões de euros serão destinados a treinamento e orientações a novos ciclistas e à melhoria de espaços onde estacionar a bikes pelo território francês.
A decisão de colocar a bicicleta no centro da política pós-confinamento tem vários objetivos — e aí dá mais inveja ainda de quem pode contar com governantes minimamente sensatos. Um deles é fazer com que mais pessoas abram mão das aglomerações de metrôs e ônibus e optem por um meio de transporte muito mais condizente com um mundo que vai precisar encontrar novas formas de convivência que protejam os indivíduos do coronavírus.
Se o distanciamento físico continuar a ser necessário, estimativas já mostraram que, por exemplo, o sistema de metrô de cidades como Londres terá sua capacidade reduzida em 15%.
Parte das pessoas pode se ver livre desse problema adotando a bicicleta como meio de transporte, quando o pico da pandemia passar.
Lugares como Bogotá, na Colômbia, já vêm incentivando o uso da bike (como eu escrevi aqui). Lá a prefeitura restringiu a circulação de veículos automotores para melhorar a qualidade do ar e, assim, tentar diminuir o impacto do coronavírus e os casos de problemas respiratórios comuns com a chegada do inverno.
A capital colombiana foi além, criando corredores emergenciais para bikes em algumas das principais avenidas de Bogotá e ampliando sua malha cicloviária.
Há outros exemplos interessantes de governos adotando alternativas para incentivar o uso da bicicleta e proteger o ciclista, como na Alemanha. Em Berlim, por exemplo, algumas ciclovias dos bairros mais agitados, como Kreuzberg, foram duplicadas, para que haja mais espaço de distanciamento entre quem está pedalando.
Quase 65 km de ruas e avenidas de Nova York estão tendo ciclovias e calçadas ampliadas, para atrair mais ciclistas e pedestres — mas a ação tem prazo de validade e durará enquanto estiverem em vigor as restrições de lockdown.
Assim que essas restrições forem suavizadas em Milão, na Itália, o governo local pretende instalar mais de 35 km de ciclovias.
Enquanto isso em São Paulo, é aquela tristeza…
A crise econômica e o surto de coronavírus fizeram com que pipocasse a quantidade de entregadores de moto e bicicleta (contei a história de uma dessas bike messengers aqui), que diariamente se arriscam em uma cidade despreparada para acolher ciclistas.
Para piorar, como bem lembrou a Câmera Temática da Bicicleta em um ofício recente ao prefeito Bruno Covas, aumentou o número de mortes no trânsito em março, em relação a 2019: foram 90 neste ano, contra 65 no ano passado. “Um aumento significativo, mesmo levando em consideração o distanciamento social e o decreto de isolamento do governo”, diz a CTB, que é uma câmara técnica específica criada para auxiliar o Conselho Municipal de Transporte e Trânsito em temas relacionadas à mobilidade por bicicletas.
A CTB lembra bem que decorridos três anos de diálogo entre eles e o poder público, “ainda não foram entregues novas conexões cicloviárias, nem as previstas para 2019-2020, nem outras emergenciais, sendo que poucas dessas obras foram iniciadas e nenhuma concluída”.
Bati um papo rápido com Sasha Hart, conselheiro da CTB, sobre como São Paulo pode ser mais “bike friendly” e como pode abraçar de fato a ideia de que a bicicleta deve ser um aliado fortíssimo para quem precisará se locomover pela capital assim que o período de quarentena passar:
Como vocês da CTB acreditam que o governo de São Paulo pode incentivar o uso da bike a curto prazo?
SASHA HART Desde 12 de março, nós temos enviado para a prefeitura diversas sugestões de curto a longo prazo, baseadas em recomendações da OMS e de especialistas internacionais e locais. De forma imediata e sem gastos, o prefeito poderia divulgar os diversos benefícios do uso da bicicleta e regulamentar a Lei Municipal BikeSP. Essa era uma meta desta gestão que geraria uma economia no enorme subsídio do transporte e seria usada para incentivar quem optar pela bicicleta. Aguardamos respostas até agora.
Se a violência no trânsito aumentou com o distanciamento social, quais medidas teriam de ser tomadas para proteger o ciclista?
A segurança no trânsito aumentaria muito se a prefeitura melhorasse as condições de quem trabalha com entregas e implementasse amplamente seu Plano de Segurança Viária. Esse plano está baseado nos princípios do Vision Zero, cuja premissa é que nenhuma morte no trânsito é aceitável. É bem sabido que vidas podem ser salvas se aumentarem a fiscalização, melhorarem o sistema viário, promoverem campanhas de conscientização e abaixarem velocidades máximas.
Vocês seriam a favor de fechar vias da cidade para as bicicletas, como fez Bogotá na pandemia?
Sim, as experiências internacionais mostram que abrir as ruas para ciclistas e pedestres é a forma mais segura para as pessoas se movimentarem, evitar acidentes que costumam encher hospitais e não gerar a poluição que tanto contribui para doenças respiratórias. Essa medida deveria também exigir os cuidados necessários e não inviabilizar deslocamentos essenciais, como ambulâncias, policiais e bombeiros.