Mulheres ciclistas, parabéns, vocês são fantásticas
Pedalar em São Paulo uns dez ou 15 anos atrás significava, basicamente, curtir a bike cercada por amigos homens. Claro que havia mulheres ciclistas nas estradas, trilhas e deslocamentos urbanos, mas eram poucas. Tão raras que nós, praticamente, nos conhecíamos todas umas as outras.
Não havia roupas para pedalar feita para nós (algumas felizardas conseguiam comprar peças lá fora), muito menos equipamentos específicos para nosso corpo. Nas competições, você tinha apenas a categoria “mulher” ou, com sorte, as categorias “sub-20” e “acima de 20”.
Porém o mais surpreendente nem era a escassez de bikes do nosso tamanho ou a total falta de interesse das marcas por nós; e, sim, nossa própria inconsciência de que formávamos um grupo — e que, como grupo, tínhamos que nos unir para conquistar nosso espaço.
Os últimos anos viram essa realidade ir, aos poucos, se transformando.
Fabricantes de bikes, acessórios e roupas se ligaram de que, para aumentar seus clientes, é preciso focar no público feminino. Agora há marcas de roupas de bike só para mulheres, equipos desenvolvidos 100% para gente e cada vez mais ações de marketing pensadas para nós, ciclistas.
Só que o mais admirável não é o quanto a indústria mudou para atrair as mulheres. O mais maravilhoso é que, enfim, percebemos nossa própria existência. Formamos grupos os mais diversos, nos unimos em torno não apenas da bike, mas do fato de sermos mulheres que amam pedalar, partimos para cima de quem não respeita nossos corpos e direitos e estamos liderando hoje uma das revoluções mais inacreditavelmente belas do universo ciclístico.
Em uma país majoritariamente pardo e negro, pedalar é ainda algo caro e elitizado. Mas nada que amedronte coletivos e projetos femininos como o La Frida Bike e o Preta Vem de Bike (Instagram @casalafridasalvador e @pretavemdebikesp), de São Paulo e da Bahia, que incentivam mulheres negras a se empoderar por meio da bicicleta.
Há grupos de amigas ciclistas lésbicas desbravando a cidade juntas por aí. Temos até uma bicicletaria paulistana, o Las Magrelas (Instagram @lasmagrelas), no qual as mulheres (dos mais diversos corpos, raças e orientações) são maioria, inclusive na parte de mecânica.
No ciclismo de estrada, São Paulo conta com iniciativas já consolidadas, como o Canela e o Pelotão das Minas, nos quais você pode pedalar sem pagar nada e ainda conhecer um monte de mulheres batutas para dividir conselhos e dúvidas. Para quem quer treinar com planilhas (nesse caso, pagas), a assessoria Lulu Five vem fazendo um ótimo trabalho de descobrir a atleta escondida em cada aluna.
Os três grupos, aliás, se uniram ao aplicativo Strava para uma ação para incentivar mulheres a pedalar 400 km de 8 a 31 deste mês. (A ideia é louvável, porém é preciso que o maior app de bike do mundo vá além de estratégias para ganhar mais clientes da mesma raça e classe social, acolhendo pessoas de outras origens e partes do Brasil…)
A revolução feminina que tem acontecido em São Paulo e outros lugares do país acompanha movimentos semelhantes de outras regiões do mundo. Não somos (ainda!) tão experts em defender grupos mais diversos, como nos Estados Unidos e Europa, por exemplo, onde há associações de ciclistas trans, de mulheres gordas, de “senhoras” mais velhas etc.
Uma recente capa da revista norte-americana Bicycling (cuja versão brasileira eu edito) conseguiu retratar lindamente o poder feminino de ciclistas que “fogem do padrão”, como se convencionou dizer. Estrelando a foto de capa está a ciclista de longas distâncias Kailey Kornhauser, gorda, inspiradora e destemida. “Não preciso que meu peso mude para eu ser uma biker”, diz ela na reportagem.
Mesmo ainda com um longo caminho a percorrer, ops, pedalar, nós mulheres ciclistas temos muito o que celebrar neste domingo.
Não é nem um pouco fácil ser ciclista nesta cidade (e neste país). Muito menos quando quem está em cima da bike é uma mulher. Pior ainda se for negra, pobre, lésbica e/ou trans. Para conquistar nosso espaço, é preciso mais que força física para mover pedais: é preciso coragem, muita, muita coragem.
“Ser mulher negra e ciclista na cidade de São Paulo reflete a dificuldade de ser mulher e negra no Brasil, adicionando ainda o desafio de disputar o espaço físico com o resto da sociedade carrocrata, patriarcal, racista, machista e escravocrata (ainda) na qual estamos inseridas. Quando você vê uma mulher negra na rua pedalando, saiba que ela é, por si só, resistência”, diz Jaqueline David, 37 anos, nascida em Diadema e parte do grupo Giro Preto, que convoca pessoas negras a pedalar na capital toda semana.
A todas as mulheres que pedalam, meus parabéns. Vocês são foda.