Mountain bikes com motor se sofisticam —porém são mesmo bikes?

Já faz uns bons dez anos que as marcas vêm focando tempo e dinheiro para desenvolver bikes de trilha com motor e bateria. No início, essas mountain bikes eram uns trambolhos, pesadonas, com bateria grandalhona. A sensação era de se estar pilotando uma motoca esquisita, de performance desengonçada.

Essa realidade mudou. E com ela surgem novas questões sobre as bikes elétricas em geral, dentro e fora das trilhas.

Primeiro explico o cenário atual, que pode ser exemplificado pelo lançamento, nesta semana, da mountain bike elétrica mais leve e ágil da fabricante norte-americana Specialized. Como você pode ver na foto abaixo, a nova Turbo Levo SL é uma MTB esbelta, que pode até enganar os mais desavisados e se passar por uma bike tradicional.

A nova Turbo Levo SL, da Specialized, é a mais leve elétrica off-road criada pela marca (Foto: Romulo Cruz/ @rcruzworld)

Segundo a marca (que há anos investe bastante grana e energia para sofisticar as chamadas “e-MTB”), a ideia da Levo SL é encurtar a distância que separava, até então, a sensação de se pedalar uma mountain bike “normal” de uma elétrica. Para isso, criou um modelo com um sistema de motor e bateria menor e mais leve, que pesa surpreendentes 3,7 kg (na Levo convencional, anterior a essa, o mesmo conjunto pesa quase 7 kg).

Enxugou-se peso, porém também diminuiu-se potência de motor, já que, ainda segundo a marca, a Levo SL é uma bike para trilhas ágeis, para ser pilotada por ciclistas leves que querem ir mais longe e que não precisam de tanta ajuda do sistema turbo (enquanto a Levo tem motor que produz 565 watts de potência máxima, a SL oferece 240 watts).

Você aciona o sistema turbo a partir desse botão instalado no tubo superior do quadro (Foto: Romulo Cruz/ @rcruzworld)

Poderosa em suas campanhas de marketing, a Specialized divulgou a Turbo Levo SL como uma mountain bike “tão leve que você vai esquecer que é elétrica”.

Aí começa o debate, que obviamente não se restringe às trilhas e pode (e deve!) ser discutido quando se fala também em elétricas de cidade e de estrada (estas últimas ainda bastante novas no mercado). A Levo SL é linda, leve, tecnológica, porém ainda é um modelo elétrico.

Aliás, podemos até mesmo dizer que se trata de uma bicicleta?

Para Renata Falzoni, que há décadas escreve e testa bikes para seu sempre ótimo Bike É Legal, “uma e-bike tem motor, é um pedal assistido, portanto não é igual a uma bicicleta. Tem motor, o que por si só é diferente, totalmente diferente”. Entretanto, ela mesma acrescenta, “a questão não é deixar de usar uma e-bike porque é elétrica, isso não tem sentido”.

“Não se trata de não simpatizar com as elétricas, nada a ver”, afirma Falzoni, ressaltando que há pontos muito positivos nelas, a começar por seu lado inclusivo, já que permitem que pessoas sem tanto condicionamento, ou mais velhas, possam também aproveitar uma trilha (ou estrada ou rolê pela cidade).

(O inclusivo aqui, veja bem, não passa pela questão do preço: mountain bikes elétricas são caras. A Levo SL tem versões a partir de R$ 57 mil, podendo chegar a R$ 105 mil. Ou seja, só quem tem muita grana pode mesmo curtir e “se incluir” no universo do MTB com motor.)

A versão mais cara da Levo SL, produzida em apenas 250 unidades e vendida aqui a R$ 105 mil (Foto: Divulgação)

Mas, afinal, por que essa discussão tem importância? Porque, primeiramente, mexe na essência do que significa pedalar uma bicicleta –uma extraordinária criação movida com a energia de nossas próprias pernas.

É interessante a indústria lançar novas tecnologias, mas também é preciso jamais perder de vista o que é, afinal, uma bike (termo que, em inglês, também pode ser lido como moto, de motorcycle, motorbike).

Ao definirmos essas fronteiras, também definimos espaços: pode uma bike elétrica como esta da foto a seguir, chamada E.Tank e propagandeada como “a SUV das bikes” (!!!), disputar a mesma trilha que uma MTB sem motor? Fora das trilhas, deveria realmente esse tanque estar na mesma ciclovia onde ficam bikes tradicionais? Se sim, não seria necessário pensar em campanhas educativas e novas regras (além de o motor poder ir até 25 km/h, em uma lei que pouca gente respeita, visto que é possível ilegalmente “abrir” o sistema para a bike ir mais rápido)?

Fat bike elétrica E.Tank, propagandeada como a “SUV das bikes”(Foto: Divulgação)

Em um país que não investe em políticas públicas que fomentam de fato o uso da bicicleta, e onde nós, ciclistas, somos cada vez mais espremidos, cercados por motoristas agressivos, qual será em um futuro próximo o espaço das (motor?)bikes elétricas no universo ciclístico?

Os rolês nas trilhas serão inclusivos, ou quem não tem grana para gastar R$ 50 mil em uma elétrica terá de sair da frente para que uma versão com motor ultrapasse?

Teremos mais gente deixando o carro em casa e se locomovendo de bike pelas cidades, ou veremos, na verdade, scooters disfarçadas de bikes concorrendo conosco nas minguadas ciclovias brasileiras?

Nada contra as elétricas (já escrevi sobre essa revolução neste post aqui, de 2018)! São divertidas e quebram um galho enorme, nas trilhas e no asfalto. E ainda podem ser, sim, uma forma de se exercitar.

No entanto é preciso sempre debater, analisar e, especialmente, saber discernir fatos diante de tantos lançamentos tecnológicos e agressivas campanhas de marketing.