2019: o pior ano para a bike em São Paulo

O ano está longe de terminar, porém já cravo aqui sem dó: poucas vezes nós, ciclistas, presenciamos épocas tão duras em São Paulo quanto 2019.

Antes de sair espinafrando uma série de decepções nesta que parecia, anos atrás, a capital mais ciclisticamente vanguarda do país, concordo que tivemos (poucas) vitórias nos últimos nove meses — quase 100% fruto de iniciativas privadas. Um bom e recente exemplo foi o Shimano Fest 2019, festival de bicicleta que neste ano cresceu 170% e reuniu 40.500 pessoas no Memorial da América Latina (SP) em quatro dias, o que indica que o interesse de marcas e consumidores de bike continua vibrante.

Porém não deixemos que um case de sucesso nos tire o foco: em 2019, temos visto pouquíssimo investimento público em políticas cicloviárias; um embate feio entre a Universidade de São Paulo (USP) e ciclistas esportivos culminou, na prática, na expulsão das bikes do campus, sem debate envolvendo quem pedala; o fim, pelo menos por enquanto, da magnífica iniciativa Ciclofaixas do Lazer, que fazia milhares de paulistanos tirarem suas magrelas da garagem aos domingos e feriados; a deterioração da ciclovia da Marginal Pinheiros, que para piorar continua com grande parte de sua área fechada por causa de uma obra nunca concretizada; ciclovias abandonadas em regiões centrais turbulentas (como a “Cracolândia”) e periféricas.

Para treinar na USP, meu amigo, agora só até as 6h30 da matina e olhe lá (Foto: Erika Sallum)

É, meu caro, enquanto isso países vizinhos nem tão melhores assim do ponto de vista econômico, como a Colômbia, abraçam a bicicleta como uma multiferramenta que não apenas empodera os cidadãos como também dá orgulho imenso a uma nação inteira — caso da vitória do jovem Egan Bernal, de apenas 22 anos, no Tour de France 2019.

Para ciclistas como eu, que pedalo há mais de 16 anos e vi de perto como a bike foi ganhando lindamente espaço na cidade e no coração dos paulistanos, é desolador testemunhar nosso potencial ser desperdiçado por falta de visão política (e por ignorância em relação a questões básicas sobre mobilidade e esporte).

O golpe que mais feriu a alma de quem presenciou o final de semana do paulistano ficar muito mais legal por causa da bike foi certamente o fim das Ciclofaixas do Lazer. A iniciativa foi criada em agosto de 2009 e disponibilizava aos domingos e feriados mais de 120 km de faixas exclusivas para bicicletas.

A Bradesco Seguros, patrocinadora do programa, encerrou a parceria com a Prefeitura de São Paulo que, como de costume neste país, decidiu acabar com as ciclofaixas de forma um tanto abrupta.

As ciclofaixas não serviam apenas para o lazer dos cidadãos. Por causa delas, muita gente começou a pedalar, decidiu trocar de bike, percebeu que precisava de um capacete melhor, começou a se exercitar mais — aquecendo o mercado de bikes, acessórios esportivos e fitness, sem falar na economia na área de saúde impactando a vida de todos nós (menos gente doente, menos gasto com saúde, menos impostos a longo prazo).

Como já escrevi aqui, uma pesquisa recente do Cebrap patrocinada pelo Itaú revelou, entre outras coisas, que na área de saúde, por exemplo, se a população do município incorporasse a bike em suas atividades físicas, haveria uma economia anual de R$ 34 milhões no Sistema Único de Saúde (SUS) só em internações por doenças cardiovasculares e diabetes.

Ciclovias de regiões como a “Cracolândia” sofrem da mesma decadência desses locais (Foto: Erika Sallum)

Nesta semana, o burburinho se deu porque a ciclovia da rua Artur Azevedo, em Pinheiros, foi recapeada e perdeu a tradicional pintura vermelha. Outras ciclovias estão passando pelo mesmo processo, que, segundo a Prefeitura, faz parte de uma revitalização que engloba dez delas, como a da Corifeu de Azevedo Marques e a do Bosque da Saúde. Isso após quase três anos sem manutenção alguma, muito menos sem a criação de novos espaços para a circulação de bikes.

Sem muita preocupação em comunicar direito os paulistanos sobre essas reformas, a Prefeitura causou ainda mais temor nos combativos ciclistas da capital, que se viram acuados com o suposto desaparecimento de ciclovias.

Ciclovia da Artur de Azevedo, recapeada e sem a tinta vermelha (Foto: Erika Sallum)

Por ter ocorrido em um bairro abastado, onde circulam muitos jornalistas, profissionais liberais e influencers, o “desaparecimento” da ciclovia da Artur de Azevedo conseguiu até reportagem na Globo (e também neste jornal). Então a Prefeitura se pronunciou de forma mais esclarecedora, como neste comunicado aqui, e até colocou cones para proteger os ciclistas (mas não respondeu ao meu pedido de entrevista).

“Nossa rede cicloviária está quase na UTI”, diz Sasha Hart, secretário-geral da Câmera Temática da Bicicleta. A CTB é uma câmara técnica específica criada para auxiliar o Conselho Municipal de Transporte e Trânsito em temas relacionadas à mobilidade por bicicletas, e também para monitorar ações já existentes. “A reforma das ciclovias é positiva, especialmente por ser uma ação prática. Porém não sabemos muito sobre o cronograma de obras, e falta contar melhor à população sobre a reforma em si e quando as ciclovias ficarão prontas.”

(Nos próximos dias ou semanas, a Prefeitura deve publicar seu Plano Cicloviário, que prevê a expansão da malha cicloviária de 173,2 km até 2020. Isso é, na verdade, um desdobramento de um projeto maior apresentado em 2018 que anunciou a criação de mais 1.420 km de ciclovias até 2028. Muita gente reclamou que 2028 está muito longe, então a gestão Covas resolveu criar um sub-plano de prazo mais curto.)

Entretanto em áreas mais degradadas ou distantes da cidade, como o extremo leste e sul de São Paulo, quem pedala fica mesmo ao Deus-dará. São raras as ciclovias, e quando existem se encontram em situação de penúria, com buracos, sinalização danificada e outros percalços. Em regiões sem espaço protegido para o ciclista se locomover, o que resta é enfrentar veículos motorizados na cara e na coragem.

Por falta de infraestrutura cicloviária, as camadas mais pobres da cidade perderam o tal “boom da bike” que atingiu partes de São Paulo nos últimos anos. Enquanto o número de viagens de bike entre os mais ricos saltou de 3.840 por dia para 19.131 entre 2007 e 2017, nas camadas mais pobres isso não aconteceu. Como noticiou esta Folha em julho, “entre aqueles com renda familiar inferior a R$ 1.908, chegou a haver retração de 3%”.

Ciclovia na av. Dr. Custódio de Lima, em São Miguel Paulista (Foto: João Alexandre Binotti)

Na contramão de estudos de mobilidade mundo afora, São Paulo (em especial governantes e setor privado) segue assim sufocando a cada dia a paixão que, com tanto esforço, os paulistanos foram desenvolvendo pela bike.

Parece meio óbvio ter de escrever isto, mas não tem jeito. Vamos repetir: mais bikes nas ruas significa menos carros, menos poluição, mais saúde, mais empoderamento feminino, menos problemas de saúde causados pelo sedentarismo, mais incentivo à micromobilidade (logo, menos trânsito).

Deixo aqui alguns questionamentos: por que manter fechada boa parte da ciclovia da Marginal Pinheiros, que recebe uma média de 42 mil ciclistas por mês? Por que a Universidade de São Paulo não abriu diálogo direto com “ciclistas esportivos” (termo meio esdrúxulo usado pela USP) para chegar a uma solução melhor para todos os lados envolvidos? Por que deixar sucateadas ciclovias já existentes, colocando a população em risco e afastando de vez futuros ciclistas? Por que só “sai na imprensa” e causa revolta quando uma ciclovia em bairro riquinho desaparece?

E, por fim, até quando vamos remar contra a maré das melhores políticas públicas de mobilidade, incentivando na prática o paulistano a desencanar de usar uma ferramenta tão poderosa quanto a bicicleta?

Triste, hein, 2019?