Casal de brasileiros relata as aventuras e os sofrimentos da Inca Divide 2019
Procure no Google: Inca Divide. Informações meio desencontradas <3, fotos alucinantes e um website confuso marcam a trajetória digital dessa competição peruana, mas nada disso tira a aura daquela que é considerada uma das provas de ultradistância mais difíceis e maravilhosas de nosso continente.
Em sua terceira edição, que terminou no final de semana, a Inca Divide reuniu alguns dos ciclistas mais treta da Terra, entre amadores e outros nem tão amadores assim. O desafio: percorrer 1.650 km, sem ajuda externa nenhuma, por um percurso insano de intermináveis subidas e descidas que somam 32.500 metros de ascensão acumulada, em um tempo-limite de dez dias (240 horas).
Do total de 55 atletas inscritos, de 16 nacionalidades, apenas 12 terminaram — incluindo quatro corajosos brasileiros; e, dentre eles, a única mulher a cruzar a linha de chegada, de um total de cinco inscritas.
A advogada paulistana Victoria de Sá, em parceria com o marido, Bruno Rosa, foram também a única dupla a completar o ultradesafio. O Brasil, terra de ciclistas amadores extremamente fortes e obstinados, teve 16 atletas inscritos, entre eles nomes bastante experientes em ultradistância, como Marcelo Florentino Soares, o “Mixirica”.
Entretanto a Inca Divide deste ano se revelou um algoz feroz, a açoitar os competidores com vento, chuva, frio, estradas de terra em abundância, subidas sem fim. Mixirica e outros 11 brasileiros talentosos tiveram de abandonar a prova por diversas razões.
A inclemente altimetria do evento provoca náuseas, dores de cabeça e outros males. Una a isso noites mal dormidas e refeições não muito regradas, e tem-se a fórmula perfeita para uma das empreitadas ciclísticas mais pavorosas de nosso continente. Mas, dizem os “finishers”, tudo vale a pena por conta das paisagens peruanas, que neste ano ganharam ainda mais esplendor com a inclusão do Parque Nacional Huascarán entre as belezas vistas de perto pelos atletas.
Com (poucos) trechos de asfalto e (muitas) partes em terra batida — modalidade que vem ganhando espaço com o nome de “gravel” –, a prova foi feita por muitos com uma bike “adventure”, de guidão drop, pneus um pouco mais grossos que os de um modelo de estrada, sem suspensão como as de mountain bike. E, por ser um evento autossuficiente, as bicicletas tinham de carregar tudo, de roupas a ferramentas, passando por comida e hidratação. Osso!
Além de Victoria, conhecida como Vicky, e Bruno, também terminaram a Inca Divide os brasileiros Frederico Costa Pinto e Leandro Carlos da Silva Oliveira. O francês Sofiane Sehili consagrou-se o primeiro colocado.
Bati um papo com Bruno Rosa nesta terça-feira (27 de agosto), pouco depois de ele e Vicky chegarem ao Brasil, após rodarem 1.705 km, com 34.323 metros de ascensão acumulada, em oitos dias e algumas horas.
Parabéns a todos os participantes, independentemente do fato de terem ou não conseguido completar a Inca Divide – o mais importante é que, juntos, fortaleceram ainda mais a cena gravel por estas nossas bandas latino-americanas.
Como foi fazer uma prova dessas? Vocês têm muita experiência em viajar de bike, mas se surpreenderam com o desafio?
BRUNO ROSA Essa foi nossa primeira prova, nunca tínhamos feito algo em um ritmo tão intenso. Mas, como já viajamos muito de bicicleta, nem tudo foi surpresa. Estávamos preparados para o pior (ou pelo menos o pior que já havíamos enfrentado antes em nossas viagens). De chuva a temperaturas abaixo de zero, subidas intermináveis ou longos dias em cima do selim. O que não sabíamos, e o que nos apavorava de verdade, era como nosso corpo reagiria a tantos dias em altitudes acima de 4.000 metros — e também como fazer tudo isso em ritmo de competição.
Quando estamos de férias, podemos mudar os planos e diminuir o ritmo. Na Inca Divide, não tínhamos como deixar a viagem mais “leve”. A prova é realmente muito mais dura do que imaginávamos. Pensávamos que teríamos alguns dias mais tranquilos e outros mais desafiadores. Só que todo santo dia era um drama. No primeiro, foi o ritmo intenso e uma subida de 80 km. No segundo, foi passar mal devido à altitude. O terceiro foi um gravel (estrada de terra e pedregulhos) duríssimo. O quarto dia foi em que a Vicky finalmente começou a se sentir melhor, então aproveitamos para correr atrás do prejuízo. O quinto foi o dia de chegar a 4.730 metros. Já o sexto revelou um gravel desafiador em alta altitude. Enquanto o sétimo foi o pior de todos porque subimos muito, pegamos chuva, neve, desistimos da corrida. Voltamos atrás na decisão, mas perdi meu GPS Tracker e ainda fizemos quase 240 km. E no oitavo dia pegamos um vento tão forte que fez com que não passássemos de 12 km/h na descida.
O que foi mais treta nesses dias em cima da bike?
Certamente a altitude. Nos três primeiros dias acima de 3.000 metros, a Vicky passou muito mal, vomitou, teve enjoo, diarreia, quase desmaiou algumas vezes pedalando e comeu muito pouco para o nível de esforço que fazíamos pedalando uma bike cheia de carga nos Andes. Além disso, a quantidade de estradas de terra era muito maior que a prevista pela organização da prova. E as condições das estradas eram muito piores do que esperávamos.
E como foi o momento em que pensaram em desistir?
Chegamos a desistir da prova no meio do dia mais duro de todos, no qual iríamos pedalar 180 km sem nenhuma cidade pelo caminho, ao longo de seis montanhas, dentro do Parque Nacional Huascarán — todas acima de 4.000 metros de altitude. O percurso finalizava na subida até o glaciar Pastoruri, a 5.000 metros de altitude, em estradas de terra. Ou seja, tínhamos que levar muita comida e água.
Para somar, já estávamos em nosso sétimo dia de pedal. Começamos a pedalar às quatro da matina, e logo o tempo fechou no topo da montanha. A chuva começou enquanto cruzávamos Altamina (uma mineradora horrível). Continuamos a subir, e a temperatura ficou perto de 0°C, transformando a chuva em nevasca. Ficamos completamente ensopados, quase congelados. De repente passamos por uma casinha bem simples com um pequeno e único restaurante: resolvemos dar meia-volta e entrar lá para tentar nos aquecer, mesmo usando quase todas as nossas roupas.
Depois algum tempo lá tremendo, esperando e pensando o que fazer, já que a chuva não passava, resolvemos desistir por causa do frio e também porque, mesmo se dormíssemos ali e começássemos no dia seguinte bem cedo, não haveria tempo suficiente para chegar ao PC3 antes da hora de encerramento (8h do dia seguinte). Almoçamos inconformados e tristes, porque depois de tanto sofrimento com a altitude e de um esforço desumano da Vicky que passara mal tantos dias, teríamos que desistir por causa de hipotermia. Por sorte, por volta das 13h, a chuva deu uma trégua (mas o frio, não). Colocamos ainda mais roupas e conseguimos seguir para as últimas subidas — as mais duras de toda a competição. Chegamos por volta da meia-noite ao PC3, depois de ter rodado 230 km e subido mais de 4.000 metros de altimetria.
O que fariam de diferente se voltassem a participar da prova?
Pneus mais largos, só isso.
Um print do Strava de Bruno, mostrando trajeto, tempo e altimetria da Inca Divide (atenção para a quantidade de calorias gastas!):
Um vídeo de 2018 para dar uma ideia do que é a Inca Divide: