O quão sexistas (e machistas) são as próprias ciclistas?
No relativamente recente “boom” da bike no Brasil e no mundo, é cada vez maior a participação de mulheres nos pedais — como já falado aqui neste blog. Crescem, assim, alguns debates interessantes e, por vezes, polêmicos. (Oba! Se surge polêmica é porque a comunidade de ciclistas aumenta, a ponto de termos gente contra ou a favor de determinado tema. E isso só deixa tudo mais rico.)
Um assunto que volta e meia tem retornado é o sexismo/machismo no mundo da bike. Se comparado aos homens, ainda somos poucas; como atletas ganhamos bem menos e nos são oferecidas competições menores; não é fácil se impor em um meio onde a mulher não raro é objetificada; e pior ainda pedalar de saia numa tarde de domingo em São Paulo (quem nunca levou cantada barata nessa situação, não é mesmo?).
Anúncios (antigos e recentes), campanhas publicitárias, pôsteres de provas e de equipamentos frequentemente exalam aquele ar antiquado de borracharia de carros, como tratei neste post aqui.
Vejamos um caso que provocou certo tumulto, em uma peça de divulgação do L’Étape Colômbia (para os leigos, o L’Étape é uma das maiores provas amadoras de ciclismo de estrada, com edições em diversos países, incluindo no Brasil). Eis aqui a “joia” escolhida para atrair a atenção para o evento:
Em uma vibe meio Globeleza, o pôster de 2018 traz até um “Oh là là!” francês para enaltecer… a moça pelada e pintada com a jersey (camisa de ciclismo) da prova. Artigos acalorados falaram da péssima mensagem que a cena com a “modelo” estava passando ao mundo ciclístico.
Porém um detalhe é essencial: a modelo em questão se chama Sora Giraldo, é ciclista amadora colombiana, tão apaixonada pela bike quanto eu ou você. Seu Instagram, bem latino, atrai mais de 65.000 seguidores de suas fotos, em geral dela mesma com as características roupas apertadas de quem pedala como esporte.
Um dos textos postados na Colômbia criticando o pôster sequer procurou saber quem era a “modelo” — descrita assim, no genérico, em uma objetificação às avessas, cometida por quem estava, veja bem, defendendo o direito das mulheres.
Sora não é ingênua. Como uma considerável leva de “Instagrammers” do universo da bicicleta, ela sabe que seu corpão e a sensualidade de suas fotos atraem uma multidão. Com isso, ela vai marcando nas imagens um mundaréu de empresas do ramo, e consegue “patrocínio” — que muitas vezes se resume a ganhar um capacete, uma bermuda ou uma bike “top” pela mercantilização da própria vida (mas isso é outro debate…).
Na semana passada, em São Paulo, uma loja de bike também causou furor ao postar fotos de uma ciclista e de um ciclista nus, para salientar a importância do bike fit (a adaptação da bike ao corpo da pessoa via equipamentos como mesa, selim e outros ajustes).
A bike shop começou assim comentando suas próprias fotos: “Sem o ajuste correto da bicicleta para nossos corpos nos sentimos nus, e ninguém quer pedalar pelado” (talvez apenas os dois das imagens acima).
Choveram críticas para lá e para cá, detonando a iniciativa. Outra leva de gente defendia as fotografias, dizendo que não tinham nada de sensual, muito menos de machista, afinal havia também um cara lá sem roupa (ambos ciclistas dedicados; inclusive ele é o dono da loja).
Coxas torneadas, jerseys e macaquinhos ultraagarrados, olhares 43, até língua de fora são parte da estratégia para ganhar likes e “followers” nas redes sociais. Fato.
A moça da foto acima, por exemplo, mora em Brasília, é embaixadora de diversas marcas (incluindo a Cannondale Brasil), oficial do Exército e ávida praticamente de mountain bike. Em meio a elogios nos comentários da foto, muitos exaltando sua beleza, pode-se ler um deselegantíssimo “Foto com riqueza de detalhes”, pois com o sol o mamilo esquerdo da atleta acabou chamando atenção do tal seguidor.
“Ah, mas o que ela quer é ‘mídia'”, dizem uns. “Conseguir bike de graça assim é fácil”, atacam outros.
Fácil? Você já carregou bike enlameada montanha acima? Depois tomou banho e foi trabalhar no Exército? Concorde-se ou não com o tom sensual do Instagram dessas ciclistas, em um país ultrasensualizado, algo escapa aos críticos: há muito empoderamento em decidir elas próprias que tipo de foto querem postar. O corpo pertence a elas, e em suas contas nas redes sociais têm o espaço — e o direito — de saírem como bem entender.
A discussão ganhou tantos contornos que uma norte-americana (que prefere não revelar o verdadeiro nome) criou uma Instagram hilário tirando sarro de tudo isso. Em seu @gravel_tryhard, ela faz versões paupérrimas das “babes” da bike. Porém seus comentários são até mesmo fofos, e segundo este artigo publicado sobre a conta no site da Bicycling USA, muitas das mulheres retratadas acabam entendendo a brincadeira e levando na esportiva — mas reside ali, sim, uma crítica a essa atmosfera de revista masculina que reina em uma parte considerável dos Instagrams de meninas que pedalam.
Há espaço para todos os tipos de empoderamento. É compreensível quem se sinta ressentido com a sensualidade exagerada de algumas mulheres. Acordamos cedo, treinamos bastante, muitas sonham em competir em um esporte mais igualitário. E talvez fotos como as da colombiana Tatiana Girardi, que tem 1,5 milhão de seguidores, não sejam a forma mais eficiente de lutar por direitos iguais.
Mas é preciso também concordar que se mostrar do jeito que se quer é uma ferramente de exercício de liberdade. Pouca roupa para quem, cara pálida? Cada uma que decida como quer sair — de preferência, tendo consciência do papel que desempenha nesse debate tão importante e que vai muito além de bicicleta. Porque, afinal, não viemos ao mundo só para ganhar capacete de graça.