O Plano Cicloviário Estadual precisa de você!
No final do ano passado, não foi apenas a impactante cena de 40 mil ciclistas rumo a Santos no Pedal Anchieta que marcou a história do cicloativismo em São Paulo. Também em dezembro, por meio da luta do mesmo grupo de ciclistas que organizou o passeio até a costa, conseguiu-se que o governo assinasse um decreto regulamentando a lei 10.095, de 26 de novembro de 1998 (!!!), que dispõe sobre o Plano Cicloviário do Estado de São Paulo.
Isso mesmo que você leu: levamos 20 anos para que nossas autoridades enfim olhassem para essa lei que trata da implementação de uma infraestrutura viária para o trânsito de bicicletas nas estradas de rodagem, como forma de promover o deslocamento e a integração com o sistema intermunicipal de transportes.
A lei prevê, entre outras coisas, a ciclovias (separadas dos carros), ou ciclofaixas quando não for possível. Isso evitaria acidentes, colocaria em prática um planejamento sério em relação ao sistema cicloviário, facilitaria a circulação das pessoas (seja por treino, turismo ou commute), harmonizaria a convivência entre ciclistas, motoristas e pedestres e integraria os sistemas de transportes.
O texto de 1998 foi “descoberto” por um grupo de advogados-ciclistas da OAB-SP que, ao lado de outros setores da sociedade que pedala, reuniu-se diversas vezes órgãos públicos para que iniciativas como o Pedal Anchieta e a concretização da Rota Márcia Prado até Santos enfim saíssem do papel.
Agora os cicloativistas estão se unindo – e conclamando a população a participar! – para fazer pressão para que o governo estadual dê andamento ao Plano Cicloviário.
“Pela lógica formal do direito, a lei tem que ser cumprida. Já pela lógica política, vai depender do nosso poder de articulação e, acima de tudo, de união dos ciclistas. Temos que deixar de lado nossos egos e nos unirmos”, diz Inácio Ferrari de Medeiros, ciclista e advogado da Comissão de Mobilidade da OAB-SP e membro do Ciclocomitê Paulista, que organizou as conversas entre a sociedade civil e os órgãos públicos.
Para ficar sabendo das audiências públicas e sobre como você pode participar desse movimento importantíssimo, a Ciclocidade (Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo) está criando um grande grupo de mobilização estadual para demandar o cumprimento do Plano. Para participar, é preciso se cadastrar online – clique aqui.
Bati um papo com Medeiros para saber mais sobre o Plano Cicloviário e sobre a luta dos ciclistas por um Estado mais seguro e respeitoso com quem pedala.
Qual a importância do Plano Cicloviário Estadual na vida de quem pedala e para a população em geral?
O plano estabelece um marco, pois até então não tínhamos no Estado de São Paulo uma legislação reconhecendo a importância da bicicleta no sistema modal de transporte. A partir da edição desse decreto, São Paulo criou um norte, um referencial, uma opção para a defesa da importância da bicicleta como meio de transporte, dando-lhe a visibilidade que ela merece. A magrela não é mais invisível aos olhos do poder público paulista.
Por que se levou tanto tempo para o governo estadual assinar o decreto regulamentando a lei?
Para mim, foi puro desinteresse politico e falta de organização dos setores interessados (os ciclistas). Isso mostra um retrato do que é a sociedade atual, que permite que os governantes ditem as políticas públicas. Depois que a Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo nos brindou com a maravilhosa Comissão de Mobilidade Ciclística, eu ficava todo dia me perguntado: “O que temos que fazer? Por onde começar?”.
Então descobrimos esta pérola jurídica: a incrível Lei Feldman de número 10.095, feita por um deputado tucano, líder do governo em 1998 e engavetada por eles mesmos há quase 20 anos. Aí paramos para pensar e nos perguntamos: “Ora, por que isso? Onde eles estavam com a cabeça que fizeram isso só para deixar no arquivo?”.
Eu reuni meus colegas da comissão – uns 20 advogados malucos como eu que trocaram o paletó e a gravata por uma camisa de ciclismo e o carro por uma bike –, e decidimos: vamos para cima deles, vamos cobrar dos governantes que honrem o que eles mesmos fizeram.
Começamos uma via-crúcis nos gabinetes de deputados. Um deles, Davi Zaia (PPS), comprou nossa briga. E houve aquele episódio lamentável lá no km 40 da Anchieta (em 2017, a polícia impediu a Descida a Santos na base da força truculenta, como relatei aqui), e tivemos depois uma audiência pública na Assembléia Legislativa de São Paulo, onde viramos a mesa para cima deles. Deu supercerto!
Primeiro o secretário do meio ambiente, Maurício Brusadin, nos recebeu; depois o governador Márcio França e sua assessoria nos deu ouvidos; no dia 30 de maio, nós “invadimos” aquele lugar no Morumbi, colocamos mais de 500 ciclistas lá dentro, em uma festa nunca antes vista. Deixamos de ser invisíveis, ganhamos respeito e espaço na mesa do governo para conversar. A partir daí, não saímos mais da Secretaria do Meio Ambiente. Foram 41 reuniões do Ciclocomitê e 12 viagens para Santos para vistoriar obra e mapear a Estrada de Manutenção (a Márcia Prado). Resultado: colocamos 40 mil ciclistas indo para Santos em um único dia.
Por que essas audiências públicas são importantes?
Porque dão visibilidade a esse assunto, tiram a pauta dos gabinetes com ar condicionado e carpetes coloridos, trazem para a rua o debate, colocam o governante novamente de frente com o povo. As audiências nos permitem falar, gritar, cobrar, são o nosso momento.
Quais os pontos positivos e os pontos falhos na lei do Plano Cicloviário Estadual?
Eu redigi o rascunho desse plano. Peguei a lei, li e reli, olhei-a com os olhos do deputado que a fez em 1998 e a trouxe para os dias atuais. Fiz um, dois, três, dez rascunhos junto com meus colegas advogados ciclistas. Entregamos para o Aldo Rebelo, secretário da Casa Civil, e dissemos a ele: “Se o governador Márcio França estiver a fim e mostrar que é mesmo um governador amigo do ciclista, ele terá que assinar isso no dia 2 de dezembro”.
Rebelo montou uma comissão com mais de dez pessoas do governo e nos colocou no grupo. Foi incrível, conseguimos conversar em alto nível, tivemos participação do pessoal da ARTESP, DER, DERSA, Secretaria dos Transportes, foi demais. A cada reunião saía uma versão do decreto mais dinâmica, bonita, gostosa de se ler. Até que, no fim de novembro, quase nas vésperas do Pedal Anchieta, fechamos a redação final. Trata-se de um dos decretos mais lindos que já vi: atual, dinâmico, completo, moderno e que coloca o ciclista como parte integrante do sistema modal de transporte no Estado de São Paulo.
Você acredita mesmo que essa lei será um dia cumprida pelo governo em sua totalidade?
Somos minoria, até pouco tempo atrás éramos invisíveis. Se cada um ficar na boa esperando cair do céu, esquece: seremos esquecidos de novo. Precisamos nos unir para que a lei saia.
A gente esteve em audiência no dia 24 de janeiro com Marcos Penido, secretário de Infraestrutura e Meio Ambiente. Fomos lá eu, pela OAB-SP, com meu parceiro o advogado Edu Nicola, e outras pessoas do movimento. Perguntamos para ele como ficarão nossos projetos do Ciclocomitê. Ele nos respondeu: “Se é bom, vamos continuar. Tudo o que for positivo e que deu certo não vai parar. Tragam-me uma proposta que vou analisar”. E então enviamos nossa proposta. O que queremos: um Ciclocomitê Paulista mais enxuto e mais ágil, com projetos e objetivos mais definidos, coordenado por um grupo executivo paritário. Queremos tornar São Paulo um Estado que vê no ciclismo não apenas melhoria na qualidade de vida, mas que queira investir no cicloturismo como geração de emprego e renda. Em termos de cicloturismo, São Paulo hoje perde, por exemplo, para Santa Catarina. Temos condições de sermos os melhores. Por isso colocamos a bola na marca do pênalti – basta ele ou o governador João Dória querer chutar e marcar o gol.