Deveríamos mesmo pedalar em rodovias?

O título deste texto é, no mínimo, polêmico. E vou ouvir muuuuuitas broncas de colegas ciclistas e desconhecidos que pedalam em estrada, como eu. Mas à luz de um dos piores e mais trágicos acidentes envolvendo bikes em rodovias de São Paulo, a pergunta é pertinente — e necessária para criar debates sobre segurança.

No dia 26 de janeiro, um ônibus atingiu um pelotão de ciclistas na Rodovia dos Bandeirantes, na altura do quilômetro 17 sentido capital paulista, como noticiou a Folha.

Não era apenas “um grupo de ciclistas”: eles eram, em sua maioria, meus amigos. Três atletas morreram, entre elas Keila Blumen, 41, amiga que há mais de uma década me fazia gargalhar com seu alto astral toda vez que íamos pedalar juntas e temíamos qualquer descida mais braba.

Todos os atletas (cerca de 28) estavam fazendo parte dos treinos da JP Ciclismo, empresa do meu antigo treinador João Paulo Vidal, com quem pedalei por mais de três anos semanalmente.

Em choque, desde então não parei de me fazer a pergunta que dá título a meu texto (e olha que já pedalei em praticamente todas as rodovias paulistanas).

O ônibus que se chocou com os ciclistas resultou em três óbitos, entre eles Keila, que morreu na hora (Foto: Jornal da Região)

Se você não é ciclista de estrada, que fique claro: nós sabemos dos riscos de se pedalar em rodovias. Não amamos levar fechadas de carros enlouquecidos ou segurar a bike com força para não cair porque um caminhoneiro desvairado tirou uma fina de propósito (quase sempre buzinando para “fazer graça”).

Porém não tivemos a sorte de nascer na Europa, onde a presença de ciclistas em autoestradas é proibida. Os europeus contam com um emaranhado de estradas secundárias, onde trafegam poucos veículos. Gozam também de uma cultura de maior respeito ao ciclismo — esporte que estamos vendo “bombar” nos últimos anos em cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

Mais do que isso: é comum em diversas cidades europeias poder levar a bike no metrô, ônibus e trem, facilitando a vida para se chegar a essas outras opções de treino menos movimentadas.

No Brasil, meu caro, a vida é dura: no metrô de São Paulo, por exemplo, só podemos transportar a bicicleta durante a semana a partir das 20h30! Aos sábados, a partir das 14h — mas quem treina depois das 14h, não é mesmo?

Se você não tem carro, não pode se dar ao luxo de pedalar em locais mais tranquilos como a Estrada dos Romeiros (que começa no km 48 da Castello Branco) ou no Riacho Grande (perto de São Bernardo do Campo). Os menos privilegiados encaram “na raça” a Marginal Pinheiros ou a Tietê, se arriscam todos os finais de semana na Anhanguera, Anchieta, Castello, Band etc.

Durante a semana, com a ciclovia do rio Pinheiros parcialmente interditada há ANOS (leia mais aqui), em um imbróglio ridículo e sem data para ser reaberta, sobra-nos nos espremer ali ou enfrentar motoristas mau-humorados na Cidade Universitária. Sim, há muitos ciclistas mal-educados também, que pedalam como se estivessem dirigindo e que pioram toda essa situação.

Cena da tragédia que envolveu ciclistas no dia 26 de janeiro (Foto: Jornal da Região)

Dito tudo isso, começa a ficar claro que a tal pergunta do título não tem muita resposta “certa”. Não deveríamos pedalar tão perto da morte na Rodovia dos Bandeirantes. Jamais deveríamos ir de bike até o incrível Pico do Jaraguá cruzando tantos veículos que (1) não estão habituados a verem cada vez mais ciclistas no acostamento e (2) que muitas vezes não percebem que deveriam redobrar a atenção ao topar com um grupo de pessoas e suas bikes.

A questão aqui não é fazer dos ciclistas as “vítimas”: quando vamos em bandos para o acostamento de uma autoestrada, também podemos colocar a vida de motoristas em risco em caso de, por exemplo, um acidente bobo.

Para Aparecido Inácio Ferrari de Medeiros, advogado e ciclista que preside a comissão de mobilidade urbana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), a situação-limite a que chegamos “é fruto de uma demanda reprimida, pois nos últimos anos o ciclista foi discriminado, esquecido, tratado como um ser secundário”. Isso, ele completa, “mesmo quando a regra do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) diz que o menor deve ser protegido pelo maior — no caso o carro deve proteger a bicicleta”.

Como bem explica Medeiros, governo e concessionárias sempre pensaram nas estradas e rodovias focando apenas nos carros, relegando a bicicleta a um segundo plano. “Quando a gente está em reunião com o governo e concessionárias e falamos do nosso direito de livre circulação previsto no artigo 58 do CTB, todos se fazem de desentendidos”, diz o advogado, que também é membro do Ciclo Comitê Paulista, que organizou as conversas entre os órgãos públicos e sociedade civil envolvidos no Pedal Anchieta (que reuniu mais de 30 mil ciclistas no final de 2018 de São Paulo a Santos, como escrevi aqui).

Medeiros faz ainda uma importante observação: “Os ciclistas devem ter claro também que todo direito impõe responsabilidades, e uma delas estabelece o respeito igual às regras de trânsito”.

Ou seja, antes de se lançar ao ciclismo de estrada em alguma autoestrada, pense bem se você está mesmo fisicamente apto para ir; se seus equipamentos passaram por manutenção recente; se o grupo com quem você vai é experiente; se o dia/horário da semana escolhido não terá carros em excesso; se as condições climáticas permitem o pedal (muitos amigos meus vão para a estrada mesmo sob garoa e com asfalto escorregadio).

Enfim, é preciso ter mais que coragem para ser um verdadeiro ciclista de estrada — é necessário, antes de tudo, ter bom senso.

Que os ciclistas que se foram no dia 26 descansem em paz.