Campeã mundial trans defende os direitos LGBT no ciclismo
Ainda são raríssimos os atletas transgêneros nas categorias profissionais do ciclismo (e em praticamente todos os outros esportes). No pódio, então, quase não se vê. Por isso, o feito da canadense Rachel McKinnon, 36, já entrou automaticamente para a história do esporte e do ativismo LGBT: no final do ano passado, ela se tornou campeã mundial de pista, na modalidade velocidade individual (categoria 35 a 39 anos).
Porém sua vitória pioneira não veio coroada de glórias. Protestos de outras ciclistas participantes e um tsunami de mensagens raivosas e transfóbicas inundaram as redes sociais de Rachel, além de sua caixa de correios, celular e até a de amigos e de sua família.
Logo abaixo de sua foto em uma rede social com a camisa de listras de arco-íris de campeã mundial, podiam-se ler frases como “você é uma doente”, “você trapaceou e enganou a mulheres da prova” ou “como você acha que uma mulher de verdade, que treinou duro, se sente ao competir com você e suas vantagens físicas?”. Isso mesmo ela cumprindo todos os requisitos para a participação de pessoas trans em competições, incluindo taxas hormonais específicas ditadas pelos órgãos que regulam as modalidades.
Mas Rachel não é apenas uma ciclista profissional de pista. Ela é também professora de filosofia no College of Charleston, na Carolina do Sul (EUA). Palestrante e ativista dos direitos das pessoas transgêneros. É uma mulher absurdamente inteligente, articulada, destemida, cuja força vai muito além das pernas. E, meu caro, ela não leva desaforo para casa assim tão fácil.
Sua vitória na pista marca, sim, uma conquista absurda para um grupo de atletas habituado a ser rejeitado, criticado e muitas vezes perseguido. Ver Rachel no pódio dá esperança a outras pessoas trans – mesmo as não atletas — de que elas podem lutar por seus direitos e por seu lugar na sociedade. Goste os haters ou não.
Bati um papo com Rachel sobre sua vitória, seu amor pela bike, sobre como lidar com tanta raiva de gente que nunca a viu na vida. E sobre como o esporte é uma plataforma incrivelmente comovente de inclusão.
Como um título mundial pode impactar a luta pelos direitos dos trans?
Há tão poucos campeões mundiais trans, em qualquer modalidade, na história do esporte que meu título já é parte dessa história. No que diz respeito a atletas trans, eu sou a única que conheço que conquistou um campeonato mundial em pista.
Em primeiro lugar, uma conquista dessas dá visibilidade a atletas trans, acostumados a nunca serem muito levados em conta. Para as pessoas trans, isso mostra que podemos, sim, ter sucesso no esporte. Muitas pessoas trans acabam abandonando seus esportes depois que fazem a transição de gênero, por uma série de motivos – e uma razão bastante comum a todas é por serem rejeitadas, assediadas moralmente e até atacadas. As reações transfóbicas após a minha vitória são um exemplo do quanto esse medo é bastante razoável.
Mas eu também sou uma especialista em direitos trans. Escrevo artigos acadêmicos sobre o assunto e dou entrevistas como esta, ministro cursos em universidades e viajo o mundo falando sobre ciência, ética e direito de trans. Vencer um título mundial ajuda a ampliar a visibilidade desse trabalho. Amplifica minha voz e meu alcance. E dá às pessoas a chance de ouvir argumentos sobre igualdade trans, vindo de alguém que tem experiência no tema e que está na elite do esporte profissional.
Após tantas mensagens raivosas recebidas nos últimos tempos, como você tem lidado internamente para conseguir tocar adiante sua carreira ciclística e a vida em geral?
Eu tenho feito muitas coisas para conseguir lidar com o ódio e o assédio moral, especialmente a explosão de mensagens de ódio postadas após eu vencer o campeonato. Tenho recebido ou sido alvo de milhares de mensagens raivosas e transfóbicas. Recebi mensagens virtuais e até cartas de ódio virtuais. Teve gente tentando achar meu endereço, meu telefone, ou ainda informações sobre minha família, meus antigos parceiros. Algo terrível.
Tenho pessoas que ajudam a monitorar meu Twitter e meu Instagram, bloqueando e apagando mensagens de ódio para que eu não as veja. Também uso “block lists” no Twitter, em que se uma pessoa da lista bloqueia alguém, então é automaticamente bloqueado da minha. Isso fez com que contas bloqueadas no meu Twitter chegassem a mais de 70.000. É um tanto engraçado perceber o quanto essas pessoas previamente bloqueadas se sentem “ofendidas”, mesmo nunca tendo interagido comigo e mesmo expressando o desejo de me enviar mensagens transfóbicas.
São exatamente as mensagens de outras pessoas trans me dizendo o quanto minha história as inspirou a retornar ao esporte que me motiva a continuar e seguir em frente.
Como o ciclismo e seu amor pela bike te ajudou a encarar as dificuldades que atletas trans enfrentam nos esportes e na vida?
Eu não diria que isso me ajudou “per se”. Eu diria que isso me expôs ao tanto que as pessoas trans lutam para participar de um evento esportivo. Mesmo assim eu sou uma pessoa de sorte. Ninguém diz que eu sou trans à primeira vez que me vêem, a não ser que procurem sobre mim na Internet e leiam meus artigos sobre transgêneros, ou se alguém revela isso (quase sempre de forma maldosa). Só depois é que a galera descobre. Então, por causa disso, eu não sofro tantos ataques quanto quem é mais “visivelmente” trans.
Ao mesmo tempo, o ciclismo me ajuda a ter insights. Eu posso usar meus talentos como filósofa, com um background em ciência, para compreender a natureza desse tipo de ataque. Meu trabalho com artigos, com meu canal no YouTube, com entrevistas, ajuda a validar o que outras pessoas sofrem. Estou em uma posição muito particular como atleta de elite – uma das poucas trans campeãs do mundo.
Você tentou pedir à USA Cycling (órgão que regulamenta as provas de bike nos EUA) para te ajudar a combater todos esses ataques? Recebeu algum tipo de apoio deles nesse sentido? Tentou falar com a UCI (o órgão internacional) sobre isso?
Não depois da minha vitória no campeonato mundial. Eles postaram um comunicado à imprensa descrevendo sua política sobre atletas trans e dizendo que eu sigo a tal política. Mas eles não me perguntaram nada sobre isso. Eles não responderam às violações a sua política contra assédio moral e bullying feitas por duas atletas do campeonato. Isso mesmo com uma lista imensa de comentários transfóbicos nos posts da USA Cycling. A organização deveria fazer seu trabalho de tomar conhecimento sobre essas atitudes, identificar quem entre essas pessoas são integrantes da USAC e fazê-las responsáveis por seus atos.
Eu não procurei a UCI. O Código de Ética da UCI não lista explicitamente identidade de gênero como algo sob proteção contra bullying ou outros ataques. O comunicado à imprensa da UCI sobre minha vitória foi terrível. Usou termos profundamente ofensivos, referindo-se às mulheres trans como “homens-mulheres”. Isso não me deixa nem um pouco otimista de que levariam minhas reclamações a sério.
Você se enquadra em todos os requisitos para que uma pessoa trans participe de uma competição de ciclismo profissional. Então por que tanta gente ainda perde tempo criticando alguém que dedica sua vida ao esporte?
Resumindo, por transfobia. Essas pessoas não estão interessadas em entender a perspectiva de seres humanos trans. Nós somos “o outro” para elas. Somos minoria, então quem liga se uns poucos trans – a quem muitas dessas pessoas consideram “gente esquisita” e abaixo dos humanos – são prejudicados? Misoginia também tem a ver com esse quadro: a maioria dos comentários furiosos partem de homens cis (heterossexuais) que pensam que estão sendo “cavalheiros” ao proteger as “verdadeiras” mulheres. Muitos desses homens dizem que estão protegendo os esportes femininos, ameaçados pelas mulheres trans – mas a maioria nunca fez nada de significativo para ajudar a expandir o papel das mulheres no esporte.
Eles ignoram grupos como o The Cyclists’ Alliance, uma associação profissional formada por ciclistas mulheres que competem internacionalmente e que é explicitamente apoiadora de ciclistas trans nas competições.
A maioria das pessoas que se opõe ao meu direito de competir no ciclismo feminino não está ouvindo as ciclistas, especialmente as profissionais. Claro que existe um punhado de ciclistas profissionais que é transfóbica, mas as que nos apoiam são em quantidade muito maior do que as que não nos apoiam.
Alguma vez você chegou a pensar em abandonar sua carreira no ciclismo por causa dessas pessoas raivosas?
Sim, pensei em largar o ciclismo. Na verdade, esses meus pensamentos em largar tudo me levou a mudar totalmente meu foco do ciclismo de estrada para o de pista. Fui diagnosticada com transtorno do estresse pós-traumático e ansiedade generalizada devido às críticas e discriminação, tanto no trabalho como no esporte. Além de um acidente feio em abril, isso tudo me levou à minha pior temporada de competições. Comecei a ficar para trás em provas em que geralmente eu batalharia para ganhar. Foi humilhante e vergonhoso, ainda mais levando-se em conta o fantástico período de treinamento que eu fizera no inverno e no início da temporada, e que havia sido um sucesso.
Eu cheguei ao fundo do poço durante o Intelligentsia Cup, uma competição de dez dias na região de Chicago. Consegui apenas um resultado top 10, e minhas pernas falharam totalmente na etapa do sprint, na qual geralmente faço pódio. Fui perseguida diversas vezes durante a competição por uma equipe que já havia sido abertamente transfóbica em relação a mim no passado (em especial o diretor do time). Eu simplesmente não queria mais ter de lidar com isso. Não me parecia mais que valia a pena.
Então abandonei no último dia da prova. Fui para o Canadá visitar minha família e tirar umas férias. Meu treinador me recomendou um retorno aos treinos de base, que são bem monótonos, focados em pedais longos de endurance. São treinos bem exigentes também do ponto de vista psicológico, porque são longos e feitos 98% em solitário. Contei isso a uns amigos, que me disseram que era absolutamente a última coisa que eu precisava fazer durante aquele momento de fragilidade emocional.
Ciclismo de pista sempre me atraiu. Adoro assistir ao Campeonato Mundial e sempre acompanho as provas olímpicas pela TV. No ciclismo de estrada, sempre fui uma sprinter. E sprint de pista são apenas dois minutos de prova. Nossa maior corrida (keirin) tem 1,5 km, metade da qual o ciclista passa atrás de um moto para atingir a velocidade da prova em si.
Meu treinador não queria nem que eu tentasse ciclismo de pista. E me disse que não poderia continuar me treinando se eu mudasse de modalidade. Então eu o abandonei. Eu tinha falado com outro treinador tempos atrás sobre minhas habilidades no sprint. Conversamos sobre a possibilidade de eu mudar totalmente para as pistas. Ele ficou bem animado. Eu também.
Isso foi uma mudança radical, uma mudança para um esporte diferente, ainda que realizado em cima de bikes também. A mudança foi a razão pela qual permaneci no esporte. Uma bike de pista é totalmente diferente de uma de estrada: é fixa (sem marcha), então se você começa a se mover os pedais se movem você querendo ou não. Descobri que tenho talentos fisiológicos e mentais para aguentar as exigências do sprint de pista. Descobri a modalidade para a qual nasci. Não vou a nenhum outro lugar: estou completamente decidida a defender meu título mundial no campeonato de 2019, no Reino Unido.
Quando você começou a pedalar? E por que decidiu se profissionalizar?
Eu era uma criança bastante ativa e esportiva. Tinha um triciclo, depois uma bicicleta com rodinhas, depois uma bike para “crianças grandes”. Íamos, eu e meus amigos, para as casas uns dos outros pedalando. Eu pedalava para ir à escola, pedalávamos em montanhas em uma floresta perto de casa. Eu sempre estava perto da bike.
Quando fiz 18 anos, comprei minha primeira bike de estrada e amava pedalar com ela. Eu não sabia nada sobre treinamento. Eu até pensavam em competir, mas é um meio intimidador, então nunca competia.
Até que, em determinado momento da vida, comecei a competir. Eu tive um acidente em minha primeira competição, graças a um cara desatento que bateu a roda dele na minha. Doeu muito. Mas uma semana depois lá estava eu em outra competição.
Na terceira prova, eu ganhei. E aí comecei a ganhar diversas vezes. Fui subindo de categoria, ano após ano. Levou dois anos para que atingisse as categorias principais nos EUA, nas quais você começa a competir com ciclistas de outros países. Ganhei uma prova profissional, em 2017.
Eu me tornei ciclista profissional porque era boa nisso, acho. Eu não ganho nada de grana para competir. Às vezes tenho patrocinadores que me dão ótimos equipamentos, mas ser uma “ciclista profissional de pista” não é exatamente uma profissão. Eu ainda continuo ganhando a vida como professora e palestrante.