Fui atropelada de bike — e quase morri
Em 15 anos de bike, contabilizei apenas um grave acidente, ocorrido enquanto pedalava tranquilamente em uma trilha de mountain bike. No último dia 1 de novembro, no entanto, enfim entrei para as trágicas estatísticas de trânsito da cidade de São Paulo: fui vítima de um atropelamento violento.
Quebrei duas costelas, a clavícula, rompi o ligamento do ombro direito, perdi metade de dois dentes, levei muitos, muitos pontos na boca e na testa. Sofri concussão cerebral.
Pratico ciclismo de estrada há exatos 13 anos. Pedalo em rodovias como a Bandeirantes e a Anhanguera. Antes que você vocifere que ciclistas não deveriam rodar em autoestradas, assumo e encaro os riscos de levar minha bike para acostamentos traiçoeiros, porém tentando ao máximo evitar horários de pico ou trechos perigosos.
Não temos muitas estradas secundárias onde treinar, meu caro, por isso nós, ciclistas, tentamos minimizar o que pode dar errado, e resistimos.
C’est la vie, isso que dá não ter nascido na Itália ou na França e, mesmo assim, amar a bike e o ciclismo. Talvez você jamais consiga entender, mas pouco importa — o que vale é nosso amor incondicional pela vida, pela bicicleta, pelo esporte, mesmo em um país que nos nega tanta coisa.
Entretanto meu atropelamento, veja só, não aconteceu em uma rodovia. Deu-se, isso, sim, em plena ciclovia da avenida Pedroso de Moraes, a poucas quadras da Praça Panamericana, zona oeste de São Paulo. Local onde circulam abonadas senhoras de bikes do Itaú, bem-nutridas crianças com os pais e hipsters entusiastas de bike sharing como as Yellow Bikes.
Resumindo o ocorrido: dois carros pararam para eu passar. Um terceiro, em alta velocidade, surgiu na faixa do meio da avenida e simplesmente virou à esquerda. Não freou. Não diminuiu a velocidade. Não imaginou que em uma área de ciclovia haveria — quem diria! — uma bicicleta.
O choque foi tão forte que meu corpo quebrou o vidro da frente do Ford Fiesta do jovem Pedro. O capacete não sofreu um só arranhão. O que significa que o impacto se deu primeiramente com meu ombro, seguido por meu rosto. Lá se foram meu ligamento acromioclavicular e meus dois dentes da frente.
Em uma Estado onde só no primeiro trimestre de 2018 houve um aumento de quase 18% nas mortes de ciclistas, em relação a 2017, segundo dados do Infosiga (Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito do Estado de São Paulo), eu não tive azar: na verdade eu nasci de novo.
A impunidade de motoristas contra quem pedala só piora, como já noticiou esta mesma Folha em julho. Segundo reportagem de Mariana Zylberkan, “nos três primeiros meses de 2018, agentes da CET autuaram 40% menos motoristas que estacionam ou transitam nas ciclovias, em comparação com o mesmo período no ano passado”.
Se na gestão de Fernando Haddad (PT) na prefeitura passamos de 63 km para 498,4 km de ciclovias, em uma ciclo-revolução jamais vista nesta cidade, na breve passagem de João Doria (PSDB) pelo cargo houve um retrocesso das políticas públicas de incentivo à bike. Paralelamente, a capital vem recebendo novas “laranjinhas” do Itaú e novos sistemas de bikes compartilhadas, a exemplo das Yellow Bikes e, a partir de 2019, das Mobikes.
Detalhe: praticamente toda essa nova onda está acontecendo na zona oeste, envolvendo ciclovias como a da avenida Faria Lima e, olha que coisa!, a da Pedroso de Moraes, onde quase morri.
Iniciativas como a brasileira Yellow ou a chinesa Mobike não estão se aventurando por regiões mais carentes de soluções de micromobilidade (meios de transporte para viagens rápidas e curtas). Concentram-se, todas elas, nas áreas mais ricas da cidade, literalmente entupindo as ciclovias da região — é só dar uma olhada na Faria Lima na hora do rush. E, mesmo assim, há pouca sinalização e quase nenhuma campanha de educação no trânsito sobre ciclistas.
Vamos continuar engolindo (e elegendo!) prefeituras que viram os olhos para o crescente fenômeno de paulistanos com suas bikes elétricas? Que se recusam a aceitar que há, sim, cada vez mais pessoas que escolhem ir para o trabalho ou para a escola de bicicleta? Que se espremem em ciclovias apertadas, mal sinalizadas, em torno das quais motoristas porcamente conscientes sobre seus deveres trafegam sem qualquer cuidado?
Infelizmente parece que sim. O futuro não se mostra promissor. Nossas escolhas políticas e nossas reivindicações pífias nos levam a crer que veremos mais bikes nas ruas, acompanhadas de muito mais acidentes.
Ações individuais existem, porém. Como minha foto acima, feita por Leandro Moraes como parte do projeto Meu Corpo Resiste (@meucorporesiste, no Instagram). Manifesto em favor da democracia, o projeto ganha agora contornos de protesto ciclístico em favor da vida. Porque ainda há quem acredite que as bikes são uma das maiores soluções para cidades melhores. Se você leu este texto até aqui, provavelmente pensa o mesmo. Boa sorte a todos nós.