Diretor-ciclista tem seu documentário sobre doping indicado ao Oscar, em um ano crucial para o ciclismo

Erika Sallum

Tudo começou com um ciclista amador — por acaso, também diretor de cinema — absurdamente estarrecido pela facilidade com que muitos atletas (em especial no seu esporte do coração) conseguem escapar de acusações de doping. Foram décadas, por exemplo, até o público enfim saber a verdade sobre Lance Armstrong: sim, o maior ciclista de todos os tempos passara anos e anos se entupindo de substâncias para melhorar a performance. Para isso, o norte-americano Bryan Fogel teve uma ideia bacana, mas nem tão original assim: ele próprio seria uma cobaia do doping durante sua preparação para uma prova, o Haute Route, nos Alpes, provavelmente uma das mais duras competições amadoras de ciclismo de estrada.

Ao iniciar seu projeto, Fogel é apresentado ao médico russo Grigory Rodchenkov, que passa a lhe ajudar com dicas do que tomar para enganar os organizadores do Haute Route — um coquetel de esteroides e hormônios relativamente fáceis de se conseguir. O que acaba acontecendo depois é tão surpreendente que levou “Icarus”, o filme de Fogel, a ser indicado ontem ao Oscar de melhor documentário, além de conquistar prêmio no Festival de Sundance e ser comprado pelo Netflix por US$ 5 milhões.

Bryan Fogel, diretor e “cobaia” de seu próprio documentário, “Icarus” (Foto: Divulgação)

De repente, o documentário — elogiadíssimo não apenas em Sundance como em vários outros festivais — toma um rumo surpreendente: Rodchenkov confessa um esquema de doping envolvendo praticamente todas as modalidades russas, e tudo isso com conhecimento e apoio do governo. O médico é acusado de compactuar com o governo e atletas de seu país, em um relatório bombástico da Agência Mundial Anti-Doping, o que resultou em um dos maiores escândalos da história do esporte (e que culminou com o banimento da Rússia das Olimpíadas do Rio e agora das Olimpíadas de Inverno da Coreia).

O sucesso do filme de Bryan Fogel, que tem boas chances de levar a estatueta do Oscar no dia 4 de março, ajuda a jogar luz em um universo esportivo polêmico muito, mas muito mais amplo que a delegação olímpica russa. Depois do mega-escândalo de Lance Armstrong e após nomes galácticos do ciclismo perderem títulos importantes (como o espanhol Alberto Contador), acusações de uso de substâncias proibidas ainda são uma sombra negra a pairar no pelotão profissional (e, concordemos, em muuuuitas provas amadoras por aí também).

Em dezembro passado, por exemplo, foi divulgado que os testes de doping do britânico Chris Froome, vencedor do Tour de France e da Vuelta a España de 2017, feitos durante a mítica competição espanhola, deram positivo. Froome, que faz o tipo “bom moço” focadão, teria ingerido níveis acima do permitido de salbutamol, um medicamento usado para o tratamento da asma. O campeão asmático negou as acusações, mas pode perder o título de vencedor da Vuelta se não conseguir se defender.

Chris Froome, em vitória na etapa 16 do Tour de France de 2017 (Foto: ASO/Alex Broadway)

Se Froome cair, será um baque e tanto para o ciclismo mundial e seus ídolos. E mais uma prova de que “Icarus” anda mais atual do que nunca — e que atletas de elite como Froome só poderiam se dopar às vistas de todos se fizessem parte de um gigantesco esquema de doping do qual participariam dirigentes, técnicos, patrocinadores e, claro, governantes. Tomara que o ciclismo saia dessa com a ficha limpa.