Na América de Trump, ciclista trans expande os limites da diversidade no esporte

Quando a ciclista norte-americana Jillian Bearden, 36, cruzou a linha de chegada no Tour de Tucson, no Arizona, em novembro do ano passado, o que estava em jogo ia muito além do que apenas a disputa pelo lugar mais alto do pódio. O feito marcou sua primeira vitória na carreira profissional como mulher. Jillian, nascido Jonathan, tornou-se a primeira ciclista transgênero no pelotão de elite de seu país — após anos de luta contra a depressão, tentativas de suicídio e, especialmente, contra o preconceito, até assumir a nova identidade. Sua ótima colocação na prova não foi, porém, seguida de celebrações: uma enxurrada de críticas caiu sobre ela, de mensagens raivosas no app Strava a manifestações de desprezo em outras redes sociais. Todos questionando: como uma competição pode ser “justa” quando uma pessoa nascida homem compete ao lado de outras mulheres ciclistas, biologicamente tão diferentes?

A história de Jillian é um exemplo de coragem e determinação em um país onde o presidente, Donald Trump, baniu, em julho, pessoas transgênero das Forças Armadas. A saga da atleta nos ajuda a entender melhor o poder que a bike tem no desenvolvimento de uma sociedade mais tolerante e diversa. E é também um exemplo comovente de como pedalar pode ser uma força central em um complexo processo de transformação pessoal. “Andar de bike sempre foi essencial para clarear minha mente e preencher minha alma. Ter a oportunidade de pedalar nos momentos mais difíceis, seja em uma estrada aberta ou em uma trilha sombreada, será sempre uma experiência transformadora para mim, e que me salvou em muitos momentos da vida”, diz.

Jonathan e, agora, Jillian (Foto: Arquivo pessoal)

No ano passado, o Comitê Olímpico Internacional (COI) mudou suas diretrizes, permitindo que atletas transgênero que nasceram biologicamente no sexo masculino participem de competições femininas, sem a necessidade de procedimentos cirúrgicos — é preciso apenas que tenham uma quantidade controlada de testosterona para isso. Jillian passou por terapia hormonal até atingir esse índice, e em abril de 2016 a USA Cycling, órgão que controla o ciclismo nos EUA, enfim concedeu a ela a permissão para competir.

O caso de Jillian é ainda mais surpreendente ao se levar em conta que Jonathan competiu anos em provas de mountain bike. Sua história e seus dados de performance antes e depois de se tornar Jillian foram utilizados tanto pelo COI quanto pela USA Cycling em estudos para chegar às novas resoluções sobre atletas transgênero.

Com sua equipe Palmares, pela qual compete como a primeira ciclista profissional trans dos EUA (Foto: Arquivo pessoal)

Até se assumir publicamente como transexual, Jillian atravessou décadas de muita angústia, dúvidas e sofrimento. Casado e pai de dois filhos, foi só depois de contar tudo para a mãe e a mulher que Jillian decidiu que precisava assumir-se também para o resto do mundo. A família aceitou sua decisão, e isso foi o incentivo que precisava para mudar também publicamente de vida — em um processo lento que envolveu muita burocracia até que o governo norte-americano e os órgãos de ciclismo a aceitassem como Jillian.

A seguir Jillian fala ao Ciclocosmo:

No pódio da Yeti Beti Bike Bash, prova de mountain bike só para mulheres, no Colorado (Foto: Arquivo pessoal)

Você enfrentou momentos difíceis após ganhar provas recentemente. Como você vê as pessoas que te criticaram tanto?
Ignorância é a principal razão pela qual as pessoas sentem necessidade de me criticar. A maioria dos indivíduos que se voltaram contra mim não é atleta, pelo contrário: são mal informados, raivosos contra o mundo, com desejo de machucar os outros. A comunidade da bike me apoiou e me enviou apenas boas energias. Eu me sinto muito feliz por ter contribuído com o COI. Por meio da ciência, eu fui capaz de mostrar, com dados anteriores e atuais, tudo pelo qual passa um atleta que se submete à Terapia de Substituição Hormonal. Eu espero que esses dados ajudem os céticos a compreender que atletas transgênero estão competindo em um mesmo nível que as mulheres.

Como você acha que a participação de ciclistas transgênero pode contribuir para um ambiente de maior tolerância para todos nós que amam bike?
Andar de bicicleta nos coloca em contato com outras comunidades, testa nossas habilidades físicas e nos conecta com pessoas. Ciclistas podem falar línguas distintas, porém sempre se entendem. Apesar de ter sido um tanto amedrontador encarar o mundo como uma ciclista trans, eu entendi que essa transição é somente um outro espaço que passei a ocupar no ciclismo. Nós, ciclistas, queremos apenas ver outros ciclistas curtindo a vida. E, se isso significa ser você mesmo e entender sua própria identidade, então vá em frente!

Como a bike te ajudou a enfrentar os momentos mais difíceis da vida?
A maior contribuição que a bike deu para minha vida foi a noção de liberdade, e também as relações com outras pessoas que surgiram a partir disso. Não vou poder competir minha vida inteira, mas meu amor pela bicicleta vai durar para sempre, até eu morrer, como parte inerente do que sou.

Como você recebeu a decisão repentina de Donald Trump de banir pessoas transgênero das Forças Armadas?
Quando eu soube da notícia, levei um choque. Que coisa horrível e vil de se fazer com a humanidade. Isso sem contar o fato de ele ter anunciado tudo pelo Twitter, de forma tão impessoal. Foi como se Trump estivesse todo este tempo escondendo seu bullying contra a comunidade LGBT, e mais especificamente contra a comunidade trans. Fiquei preocupada por minha própria segurança e das pessoas trans nas Forças Armadas. O que Trump fez foi horrendo e não deveria ser tolerado. Foi como se ele nos tivesse levado ao passado, para os tempos pré-Lei dos Direitos Civis de 1964.

A seguir, um vídeo recentíssimo (em inglês), do jornal The Denver Post sobre Jillian: